Segunda regra: não estragar a vida um do outro

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— Uraraka-kun, bom dia! — o Quatro-Olhos para na frente dele, cruzando os braços depois de ajustar os óculos — Eu vejo que você não está usando gravata novamente.

— É? — ele quase morde a língua pra segurar a vontade de mandar esse babaca ir se foder.

— É- É. Digo, sim. Eu tenho certeza que não preciso lembrá-la da obrigatoriedade de estar adequadamente uniformizada a fim de zelar pelo nome e imagem de nossa instituição acadêmica e-

— Ah, você ainda não conseguiu tirar aquela mancha da gravata, né, Ochako-chan? — A Menina Sapo entra no assunto de repente.

— Hã?

— Eu derrubei esmalte na gravata dela, a gente ainda não conseguiu limpar, Iida-chan.

— Ah bom, se é assim... Por favor, Uraraka-kun, use o uniforme completo assim que possível, está bem? — ele põe a mão no ombro dele e acena com a cabeça firmemente antes de se afastar em direção à porta, provavelmente pra chamar quem ainda tá lá fora. Filho da...

— É, ele não alivia nem pros melhores amigos, hein? Tão certinho, ribbit. — a Menina Sapo diz — Eu não sei onde tá sua gravata, mas se você precisar que eu empreste uma extra...

— Eu só não sei qual o sentido de usar essa... coisa que aperta o pescoço. É só um pedaço de pano! Quem liga?

— O Iida-chan, claramente. Bom, se você não quer usar, você quem sabe, né?

— Pode ter certeza que eu sei! — que merda! Ele não pode falar desse jeito, dá muito na cara! — Aí, você... não precisava ter mentido sobre o esmalte ou sei lá... valeu, eu acho.

— Sem problemas, ribbit. — ela inclina a cabeça levemente e o encara.

— Que é? — e ele se afasta um pouco, não gostando nem um pouco do jeito dela.

— Ochako-chan... eu já te perguntei isso antes, mas... você tá bem mesmo, né?

Ele respira profundamente, como caralhos a Uraraka aguenta não mandar esse bando de enxeridos à merda?

— Tá tudo certo.

— Certeza? Você tá... meio estranha desde aquela missão no laboratório, ribbit. Ou... isso tem alguma coisa a ver com o Midoriya?

— Por que diabos teria alguma coisa a ver com aquele n- com ele? — ele se corrige, franzindo as sobrancelhas.

— Bom, você sabe... — não, ele não sabe! O que é que ele tem que saber? — Deixa pra lá, ribbit, se você prefere não falar nisso, eu não vou insistir. A gente conversa na hora do almoço.

— Eu... — ele dá uma olhada ao redor, vendo o próprio corpo ouvir atentamente à qualquer merda que o Pikachu tá falando com o Fita Crepe. Puta merda, olhando daqui ele parece tão imbecil! — ...vou almoçar com o Bakugou hoje.

— Ah, claro! — ela olha na direção dele — Espera, o... Bakugou-chan?

— É. Não é nada pessoal, ele me pediu primeiro.

— Ah... ok, ribbit. — a Cara de Sapo vai pro lugar dela, mas ele percebe como ela continua olhando pra trás, apoiando o dedo na bochecha. Caralho, ele precisa aprender a ser mais convincente como Cara de Lua, aquela ali já deve ter percebido que tem alguma coisa errada...

Por isso que, por mais que a última coisa que ele queira é ficar perto dela, sendo lembrado de que o corpo dele tá com ela e ela claramente não faz ideia de como usá-lo do jeito certo, não tem outra escolha. Katsuki precisa ficar de olho pra ter certeza que Uraraka não tá fazendo besteira e fodendo com a vida dele... e tá, talvez ele precise pegar mais algumas dicas de como agir como ela, é uma merda, mas é bem melhor do que ficar preso num quarto de hospital enquanto todo mundo vai partir pra porrada e ir atrás do pivete que fez isso!

Mas como ele faz pra fazer essa porra funcionar? Lembrar o nome de todo figurante dessa sala? Sorrir tanto até que essas bochechas enormes dela comecem a doer? Ser... simpático com o Quatro-Olhos e com o Deku? Que nojo, cara!

Mas que seja, ele vai ser uma Uraraka melhor que a própria, vai vendo!



***

— Só agora que eu reparei. Ô, Bakugou, tu tá usando gravata? — o Sero pergunta.

— Tô. — ela olha rapidamente, verificando mais uma vez o jeito como se vestiu, tentando imitar ao máximo as calças largas na cintura e o blazer semi-abotoado, mas... ela esqueceu desse detalhe, que droga! Sorte dela que ela pode erguer uma sobrancelha e, com a cara mais lavada do mundo, perguntar — E daí?

— Não, não, nada. Só achei esquisito, achei que cê tinha tocado fogo nela ou sei lá. Tá quase apresentável, cara! — ele dá um joinha pra ela, e ela olha pro lado, tentando não parecer muito tensa.

— Nosso menino tá crescendo! — Kirishima posa dramaticamente, fingindo limpar uma lágrima do olho.

— Eu não podia estar mais orgulhoso! — e o Kaminari entra na brincadeira, dando a mão pro Kirishima e o imitando.

— Vão... vão se ferrar! — ela fica surpresa como isso realmente soou bem Bakugou.

Ochako coça esse cabelo que não é dela. A verdade é que ela adoraria pentear ou fazer alguma coisa pra domar essa bagunça que é o cabelo dele, mas ela não pode, seria suspeito demais. Tudo já é suspeito demais, ela tem evitado a todo custo usar a individualidade dele, sem querer chamou algumas pessoas pelo nome e deixou escapar uma ou outra risadinha de alguma gracinha dos meninos, e nada disso é Bakugou, então se ela não consegue agir como ele nos grandes detalhes, deveria pelo menos tentar nos pequenos.

Mas alguns são mais difíceis que outros... como, por exemplo, não falar oi quando o Deku passa por ela e pelos garotos pra ir pro lugar dele. Ela o olha rapidamente, notando como ele dá um tchau tímido na direção do Iida e da garota que supostamente é ela, e sente um nó na garganta quando se vê virando a cara pra ele. Deus... o Bakugou não tá nem tentando... ela vai ter que chamar a atenção dele nesses detalhes depois.

Se bem que... ignorar o Deku talvez seja o melhor agora, ele com certeza perceberia que tem alguma coisa diferente e ficaria preocupado, e a última coisa que ela quer é encher a cabeça dele de minhocas ainda mais, ela já fez isso o bastante desde a última conversa que eles tiveram há uma semana...

Mas não é hora de pensar nisso.

Ochako é trazida de volta por um celular vibrando no bolso dela. Ela olha rapidamente pros lados e o pega. O Bakugou garantiu que não tem nada a esconder e só entregou o celular dele sem cerimônia pra ela, mas ainda é esquisito, e ela se sente uma criminosa... Ochako olha na direção dele e vê que ele está olhando de volta, apontando com os olhos pro celular... ah, é uma mensagem dele mesmo.

"Você vai almnçar comigo hoje. Só nós dois."

"almoçar*"

"O teclado do seu celular é uma borta!!!"

"bosta*"


Ela podia revirar os olhos e responder que é melhor ele ir se acostumando, nem todo mundo pode bancar um smartphone chique como o dele, mas, por algum motivo, ela só acha graça e dá uma risadinha.

O que, claro, não passa despercebido pelos meninos, que imediatamente olham pra ela, curiosos.

— Hmmm, tá rindo enquanto olha pro celular... Tá... conversando com alguém interessantchi? — o Kirishima pergunta em tom de deboche.

— N-não, eu... — ela limpa a garganta — não é da sua conta! — Ai caramba, qual era o apelido do Kirishima mesmo? — Cabelo de... tomate. — ai, não era isso! Que droga!

— Hã? Tomate? Ahhh, porque é vermelho, entendi. — Kaminari dá risada e um tapa no ombro dela — Gostei desse! Acho que vou usar também!

— Qual é, cara! — o Kirishima faz biquinho, e é tão difícil não rir.

— Ah, agora tua cara tá igual um tomate também! Que bonitinho! — e o Kaminari continua rindo.

— Boni... bonitinho, até parece! E-eu... vou pro meu lugar! — e ele sai com as mãos enfiadas no bolso, visivelmente envergonhado. Ao olhar pro Kaminari, ela percebe que ele também tá meio sem graça. O Sero parece meio confuso e coça a cabeça, e assim os meninos se dispersam pra longe dela.

Ufa! Essa foi sem querer, mas ela tirou quase de letra. Ochako olha pro celular, lembrando-se que não respondeu a mensagem, e digita rapidamente.

"Almoçar? Por quê?"

"Só vai pro terraço e não faz pergunta, porsa!"

"*porra"
- ela põe a mão na boca, tentando não rir. E a risada realmente some quando ela sente o cheiro na palma dessa mão, é um cheiro... meio doce.

"Pro terraço? Mas e o almoço?"

"Eu fiz bentôs. Agora chega de pergunta!"

Ela vai responder um "Ok" quando o professor Aizawa entra na sala.

— Bom dia. Todos sentados. Bakugou, Uraraka, guardem o celular.

— S-sim, senhor! Desculpa! — ela pula no susto.

Opa! Ela acabou de responder quando ele chamou "Uraraka?" Não, mas ele também chamou a atenção do Bakugou. Mas... ela pediu "desculpa?" Aizawa parece ter percebido o quão atípico a resposta dela foi, encarando-a com um olhar indecifrável, mas cheio de significados. Ochako se ajeita na carteira e pega o livro, tentando disfarçar e sabendo que, do outro lado da sala, o menino preso no corpo dela tá atirando facas com os olhos em sua direção. Ele só não vai matá-la no intervalo porque esse é o corpo dele, e ele não deixaria nada de ruim acontecer com o próprio corpo.



***



— Até que enfim! — Katsuki revira os olhos e apoia as mãos nos quadris, ele tem a sensação de que essa pose não é tão ameaçadora nesse corpo. No máximo, vai fazer ela se sentir um pouquinho culpada, mas não exatamente intimidada.

— O Kirishima-kun me pegou de papo e queria saber aonde eu ia... ele é bem insistente, né?

— Pode crer, você mandou ele arranjar uma louça pra lavar e parar de encher o saco, certo?

— Hã, não, eu... só falei que tinha um negócio pra resolver...

— Tsk, não fica dando satisfação da sua, ou... da minha vida por aí, cabeção. Nem pra ele, nem pra ninguém, me ouviu?

— Tá, tá... ouvi... — agora ela revira os olhos, os dois percebendo que o gesto seria bem convincente como bem típico dele — por que você me chamou aqui?

— Pra almoçar, já disse. — ele ergue as duas caixas de bentô, oferecendo uma para ela e se sentando no chão sem cerimônia. Ela cora com a visão diante dela... por que raios ele não tá usando meia-calça?

— N-não senta assim! Meninas... não costumam sentar assim...

— Foda-se, eu nem sou menina mesmo. — ele dá de ombros e começa a comer — Para de frescura e come logo, a gente precisa conversar.

— Sobre?

— Sobre esse negócio todo. A gente tem que fazer isso direito.

— Hum... eu sei disso?

— Então por que perguntou, caralho? — ele resmunga com a comida na boca.

— Porque eu não tô entendendo a necessidade de vir almoçar escondida quando a gente pode discutir isso depois da aula ou por telefone, ué.

— Ah, e você acha que você ia mandar bem fingindo ser eu na hora do almoço? Eu já te vi, Cara Redonda, você não fecha o bico e fica dando risada que nem uma idiota com aquelas meninas, você só ia me fazer parecer um imbecil!

— Eu... não ia ficar de papo com as meninas, né? Eu ia sentar com o Kirishima-kun, com o Kaminari-kun e o Sero-kun-

— E para com esses nomes e esses... "kun", porra! Eu não falo isso! É "Cabelo de merda", "Pikachu" e "Fita Crepe"! Você vai acabar entregando a gente!

— EU vou acabar entregando a gente!? Olha o jeito que você tá sentado! Olha o jeito que você come! Cadê a meia calça e a gravata? E... — ela respira fundo — você não pode maltratar meus amigos, Bakugou-kun.

— Eu não tratei ninguém mal, não fode!

— Você ignorou o Deku quando ele deu oi na sala! Eu vi, Bakugou! Isso nunca vai dar certo se você for... você perto dele! — Katsuki para de encará-la, é irritante assistir ao próprio corpo dando chilique desse jeito.

— Também não vai dar certo com você boiando na aula e dando sorrisinho pra aqueles moleques. Se você derrubar minhas notas, eu te mato. — ele reclama entre os dentes, achando que isso ia fazê-la parar com a ceninha.

— UGHHHH, você- você é impossível! É tão difícil assumir que você tá errado uma vez na vida? Tá, eu sei que eu não tô fazendo isso direito, eu não sei ser você! Mas VOCÊ também não sabe ser eu, Bakugou-kun! Lembra da regra número 2? Você acha que só eu posso estragar sua vida, mas você vai acabar estragando a minha se continuar agindo como você mesmo!

— Você se daria bem melhor se você fosse mais como eu, Bochechuda, pode acreditar.

Os únicos sons audíveis são o do vento e o da tensão correndo por entre a brisa do dia ensolarado e quente.

— Não dá pra conversar com você mesmo. — Ochako sacode a cabeça e anda em direção à porta. — Eu é que não vou ficar aqui perdendo meu tempo.

— Onde é que você pensa que vai? — Katsuki se levanta rapidamente e para na frente dela, impedindo-a de avançar para a porta.

— Me deixa passar, Bakugou. — nenhum dos dois jamais ouviu a voz dele soar tão chocantemente baixa e, ao mesmo tempo, estranhamente ameaçadora.

— Ou o quê, Uraraka? Você vai me bater? Vai bater em você mesma? — ele dá um sorrisinho irônico.

— Você sabe muito bem que não, eu não faria isso nem se a gente nunca tivesse trocado. Essas provocações não funcionam comigo, pode esquecer. Agora... por favor, me deixa passar.

— Me obriga. — ele tenta repetir a pose intimidadora, lembrando-se de erguer os mindinhos dessa vez.

Ochako revira os olhos e solta o suspiro mais irritado que ela consegue nesse corpo.

— Sabe, Bakugou-kun... tem uma coisa que você tá esquecendo... a gente pode estar com as mentes trocadas, mas... o corpo é o mesmo... — ela se aproxima lentamente.

— E? — ele corrige a postura, entrando em estado de alerta.

— E que eu conheço meu corpo, meus pontos fortes e fracos... por exemplo, sabia que eu tenho muita cosquinha... AQUI?

Em um movimento rápido, Ochako leva a mão nas costelas do corpo dela, movendo os dedos em ritmo alucinado, a reação dele é imediata, mas não exatamente a esperada: Katsuki segura o pulso que pertence a ele com força, sem mindinhos levantados dessa vez, o que inevitavelmente faz a garota presa no corpo do garoto flutuar, os pés dela se soltam do chão e terminam voltados para cima. Ochako o encara com olhos arregalados, e ele a encara de volta com um sorrisinho debochado.

— Você também tem reflexos bem decentes, não tão bons quanto os meus, mas dá pro gasto.

— Ah, é? — É uma sensação nova e libertadora: flutuar sem ficar enjoada. Ochako se dá conta de algumas coisas enquanto se move como um balão. Primeiro: Bakugou acabou de reconhecer que algo nas habilidades dela pode ser considerado "decente", o que, vindo dele, é um tremendo elogio. Segundo: ele tem razão, os reflexos dele são bem mais rápidos, é por isso que ela pode se aproveitar do estado levitante desse corpo para dar um salto mortal e empurrá-lo pra trás com os pés, pegando impulso pra se livrar da mão apertando o braço dele. O que é... sensacional de maneiras inimagináveis para ela.

E talvez até pra ele, considerando como ele parece sorrir um pouco ao perceber que ela acaba de se contradizer ao deixar as provocações dele funcionarem com ela.

— Tá rindo de quê, Cara de Lua? Eu não vou te liberar! Não enquanto você- nnng.

É bem pequena e ela não sabe exatamente como fez, talvez seja outro reflexo instintivo do corpo dele: usar explosões pra mudar a trajetória, e Ochako deixa acontecer, estica os braços pra trás e permite que o suor acumulado se detone, fazendo-a ir pra frente e agarrá-lo pela camisa, ela se aproveita pra segurá-lo com força, num gesto muito parecido com um abraço. Mas claro, por mais incrível e poderosa que a individualidade dele seja, não é possível desafiar a gravidade — ou falta dela— por muito tempo, e os dois voam desastradamente em direção à grade do terraço.

— Me libera agora, Bakugou-kun! Ou vai ficar muito alto e a gente vai se machucar!

Ochako tenta frear os dois prensando os calcanhares no chão, mas as grades ficam cada vez mais próximas

— Não me diz o que fazer, maldita! E me solta logo!

— Não se você não me liberar!

— Ué, usa minhas explosões pra chegar lá embaixo sem cair, não é você a espertona?

— Eu... eu não quero usar suas explosões, eu... não sei usar direito!

— Lógico que não sabe! Só eu sei usar minha individualidade!

— Eu não tô discordando de você, mas você também não sabe usar a minha. A gente não sabe muito sobre o outro, e eu só quero que você admita isso, agora me libera ou a gente vai-

Eles não caem, pelo menos não prédio abaixo. Ambos se espatifam no chão do terraço, sentados e atados por firmes tiras brancas nos pulsos e cinturas. Katsuki bufa de raiva ao vê-la usando o rosto dele pra fazer uma expressão tão assustada, como se ela fosse burra e não soubesse que o que acabou de acontecer foi o Aizawa anulando a individualidade dela e amarrando os dois como se eles fossem cachorros.

— Embora eu não imagine como, espero que os dois tenham uma boa explicação para isso. — Aizawa diz num tom muito mais cansado do que irritado.

Mas provavelmente é só impressão, ele deve estar tão furioso quanto eles.


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