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Quando acordo pela manhã, sinto a marca profunda que a fivela do cinto deixou abaixo do meu umbigo. Deveria ter tirado a droga da calça antes de ir para a cama, mas acabei pegando no sono antes mesmo de apagar o cigarro e tenho sorte de não ter causado um incêndio.

Passo a mão pelo cabelo e os meus dedos enroscam em nós dos fios. Ele não é longo, mas de certo precisa de mais cuidados do que estou disposto a lhe dar.

Confiro a hora no visor do celular. O despertador que havia programado tocou a cerca de vinte minutos atrás e pelo que parece, foi incapaz de me arrancar do sono. Se não sair da cama agora, vou acabar atrasando a mim e a Agatha.

Por um longo momento, encaro o nada e considero se devo ou não ir para a porcaria da escola. Há vários alunos idiotas, aulas idiotas e professores idiotas à minha espera. Meu ânimo está mais desagradável do que o meu hálito pela manhã e com toda certeza, vou me dirigir ao fundo da sala e dormir sobre a carteira durante a primeira aula. Mesmo assim, ainda preciso frequentar aquele lugar.

Levanto. A parte mais difícil do dia é começá-lo. O mundo sempre parece menos receptivo quando se está na cama. Recolho do chão os restos do cigarro da noite passada e os coloco no cinzeiro. Abro a gaveta do criado mudo ao lado da cama e tiro um cigarro novo de lá. Antes de acendê-lo, vou até a janela e a abro o máximo possível, deixando que o vento gelado da manhã invada o quarto e faça os pelos do meu tronco nu se arrepiarem.

A primeira tragada faz os meus pulmões encherem de fumaça tóxica, que provavelmente me matará em breve. Mas por outro lado, parte da angústia constante que carrego se dissipa, assim como a ansiedade que aparece quando acordo e o desânimo para executar qualquer atividade. Me parece uma troca justa, no final. Encurtamento de uma vida de merda por uma vida não tão merda assim.

A legislação canadense me impede até mesmo de entrar em lojas onde cigarros são vendidos, mas felizmente, desenvolvi meios de conseguir os meus.

Fecho a janela quando começo a tremer de frio, uma prática nada econômica, levando em consideração o esforço do aquecedor para fazer a temperatura voltar a subir. Tento arrumar meu cabelo com uma escova velha, mas alguns fios insistem em sair do lugar. Em frente ao espelho manchado, noto um hematoma na minha clavícula, mas não tenho ideia de como o consegui.

Encaro meu corpo por um momento. Me pergunto se caso levasse uma vida saudável, teria algo a mais para mostrar do que essa pele pálida e ossos pontudos, mas logo percebo que não me importo com a resposta.

Visto uma camiseta listrada de botões e tecido grosso, além de um moletom preto por cima. Calço um par de tênis surrados e encho os bolsos da calça com cigarros, isqueiro, celular, fones de ouvido e alguns trocados. Por fim, pego a minha mochila e desço para a cozinha.

Meu apetite raramente resolve aparecer pela manhã. Mesmo assim, me esforço comer alguma coisa. Tento a sorte com algumas torradas e uma xícara de café forte. Na verdade, não há muitas opções. O pão é um dos únicos itens presentes na dispensa. Moira não costuma abastecer a casa com frequência.

Sentado junto à mesa da cozinha, percebo o som do chuveiro ligado. Moira continua em casa, o que é bem estranho, pois tenho certeza que ela deveria estar no trabalho.

Não a chamo mais de mãe, pelo simples fato de ela não agir como uma. Passei a vida inteira sendo órfão de ambos os pais, pois tudo o que Moira representava era insanidade e alcoolismo, que habitava boa parte dos meus pesadelos à noite. Moira era a mulher que deveria se responsabilizar por mim, mas que desaparecia por dias, esquecia de que eu precisava me alimentar, ou precisava apenas ter alguém do meu lado. Sendo assim, cheguei à conclusão de que ela não merece o título.

As torradas descem pela minha garganta como pó de serra. Deixo-as de lado e me ocupo apenas com o café. Dave aparece para mim, ocupando a cadeira ao meu lado, o que não é surpresa alguma. Não é como se ele fosse embora à noite e voltasse pela manhã, me fazendo uma surpresa matutina. Dave sempre esteve ali, sua presença é constante. O fato dele estar visível, sentado junto a mim, é só para frisar sua existência.

Ouço uma porta abrindo e fechando em seguida. Moira deve ter saído do banho. Imediatamente, a imagem dela nua e sufocando com o próprio vômito invade minha mente, tão vívida quanto se estivesse acontecendo agora. Tenho um leve momento de vertigem enquanto tento me livrar da influência dele e finalmente, estou de volta ao controle da minha mente.

Olho irritado para Dave.

— Para com isso! — Ordeno, num sussurro. Ele sorri de volta, ou mostra o mais próximo de um sorriso que suas feições bizarras podem expressar. Faz isso só para me lembrar do quanto odeio Moira. Tenho certeza de que ele gosta da sensação do sentimento ruim fluindo pelo meu peito.

Sinto o celular vibrar no bolso da calça. O alcanço para ler uma mensagem de Agatha.

ESTOU QUASE AÍ

Dizia ela.

Deixo a xícara e o prato com as torradas na pia, jogo minha mochila sobre o ombro e vou até a porta, saindo de casa assim que ouço Moira sair do quarto. Fecho a porta antes que ela diga alguma coisa, ou eu tenha que ver o rosto dela.

O Sussurro do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora