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O dia já começa com uma chuva torrencial. Sinto dores assim que abro os olhos. Sento na cama e jogo as cobertas de lado, examinando o meu corpo nu. Há uma grande mancha escura no lugar onde acho que fica o meu estômago. Outras se espalham pelo meu tronco, na região abaixo das costelas. Os órgãos que ficam sob a pele parecem ter sido amassados e doem ainda mais cada vez que respiro.

Levanto com as pálpebras ainda relutantes em ficarem abertas. Vou até o espelho pendurado na parede, tentando desfazer os nós no meu cabelo com os dedos, e analiso o estado da minha cara. Além das olheiras e do aspecto doente de sempre, há um hematoma que se espalha pela maçã esquerda do meu rosto e pela bochecha. Ao menos o meu nariz não parece estar quebrado, o corte tem uma aparência repugnante, mas podia ser pior.

Acendo um cigarro e a fumaça se acumula no quarto. Está frio e molhado demais para abrir a janela. Procuro pelas peças de roupas mais impermeáveis que eu possa encontrar no meu armário. Visto uma calça jeans, duas camisas lisas e um casaco grosso e azul, meio desbotado por conta do tempo.

Desço as escadas devagar, tentando não fazer barulho e encontrar com Moira, mas também há a dor nas minhas costas que me obriga a descer um degrau de cada vez.

A dispensa está completamente vazia. Não me importo, não tenho fome. A única coisa que resta na casa é café. Preparo uma caneca grande e levo para a mesa da cozinha. Pouco a pouco, o líquido escuro e fumegante me aquece e me faz despertar de verdade.

A chuva parece aumentar do lado de fora. O barulho das gotas batendo forte contra o telhado e o concreto da rua é reconfortante. Mal penso na noite anterior. Faço o maior esforço possível para deixar as imagens da briga e as atitudes de Raphael de lado e imagino que até poderia esquecer tudo aquilo, se não fosse pela minha bochecha latejando toda vez que abro o maxilar para tomar o café.

Moira aparece na cozinha. A imagem dela agora não condiz em nada com a de ontem à noite. Ela havia tomado um banho e claramente se livrado do álcool. Usava roupas limpas, um pouco gastas e mantinha o cabelo preso e penteado. Haviam olheiras embaixo dos seus olhos, dando-lhe uma aparência cansada, que se acentuava pela estatura baixa e o porte magro.

— O que aconteceu com o seu rosto? — Ela pergunta, mas não se aproxima de mim. Não consigo identificar se a expressão dela é de preocupação ou de curiosidade. Provavelmente a segunda alternativa.

Moira não deve se lembrar de nada do que aconteceu ontem. E caso lembre, vai fingir que não. Tomo um longo gole de café, estendendo o momento de silêncio e avaliando como vou responder.

— Um acidente na loja — minto. Ela levanta a sobrancelha, descrente, mas não insiste.

Desvio o olhar, deixando claro que não estou disposto a continuar uma conversa, mas Moira se mantém onde está, perto da porta que separa a cozinha da dispensa.

— Não tem mais nada aqui — ela começa apontando para as prateleiras vazias. — O meu patrão só vai me pagar depois de amanhã e eu estou sem dinheiro nenhum. Você não tem algum para me ajudar a comprar comida?

Deixo a caneca sobre a mesa e por um minuto apenas a encaro. O olhar dela não desvia do meu e por trás de todo o orgulho que ela precisou reprimir para me pedir algo, há um tom suplicante.

Minha mandíbula serra. Moira trabalha fazendo faxinas numa casa em Duncan. Tenho quase certeza de que ela gastou tudo o que tinha ontem, bebendo até perder o rumo, como sempre fazia. Querendo ou não, ela é a minha mãe. Algo humano e instintivo dentro de mim, lá no fundo, espera que ela seja uma figura protetora e responsável. Apesar de Moira já ter conseguido destruir essa imagem há anos, não posso evitar o sentimento amargo de vê-la nesse estado: bêbada quase todo dia, me pedindo dinheiro para ter o que comer.

Respiro fundo, tentando empurrar para longe o sentimento de decepção que sinto em relação à Moira. Não gosto dele, pois sei que se estou decepcionado, é porque ainda espero que ela assuma seu papel de mãe. Bebo o resto do café em um gole. Devagar e sem dizer nada, vasculho os bolsos da calça a procura de alguns trocados que tenho quase certeza de que estão ali.

"Ela não merece!" Exclama Dave.

Ele havia surgido do nada e se sentava numa cadeira da forma mais humana possível, na outra extremidade da mesa. Sua voz me pega de surpresa e me assusta, mas não lhe dou atenção.

"Mande-a se ferrar! Mande!" Ele continua a falar, inclinando-se em direção a mim.

Ela não merece, mas não posso dizer não. Alcanço as notas de dinheiro e estendo-as para Moira. Não conto, mas não deve ser mais do que vinte e cinco dólares. Ela se aproxima e pega o dinheiro das minhas mãos, mas não chega a encostar em mim. Levanto, sem olhar para Dave ou para Moira e sigo em direção ao quarto.

"Idiota.... Idiota..." Sussurra Dave, no fundo da minha mente, ao mesmo tempo em que imagens de Moira comprando bebidas explodem atrás dos meus olhos.

Tento acreditar ao máximo que ela vai mesmo comprar comida e ignoro as acusações de Dave. A voz dele é alta e me atinge como a picada de uma agulha. É difícil não a obedecer. Odeio ter que ouvi-la, mas não consigo voltar a calá-lo, como fiz anos atrás.

Agatha me envia uma mensagem assim que chego ao quarto, dizendo que já está quase aqui. Pego minha mochila e algum dinheiro para o almoço na gaveta do criado-mudo. Depois, desço e vou direto para a varanda, onde o vento é gelado e a chuva continua caindo, sem intervalo.

O Sussurro do VentoOnde histórias criam vida. Descubra agora