Além das escoriações, há uma linha aberta e ensanguentada na minha mão, próxima ao pulso. Me certifico de não ter nenhum pedaço de vidro no corte antes de desligar a torneira. Não devo precisar de pontos ou ir ao hospital.
Volto para o quarto, os ouvidos atentos para novos ataques de Moira no andar de baixo, com uma única frase se repetindo na minha mente:
... se não tivesse nascido, ele nunca teria me deixado... Nunca!
... ele...
Tento não pensar nisso com a cabeça cheia. Já tive algumas experiências parecidas no passado e me lembro bem de como elas não haviam sido agradáveis.
Pego o celular que estava jogado sobre a cama. Há uma notificação de mensagem no visor. Me animo por um momento, imaginando que seja Agatha, pois preciso mesmo de alguém para conversar. Mas ao invés disso, me deparo com Raphael, dizendo que Jannet acabou de lhe contar que fez um teste só por via das dúvidas e não estava grávida.
Respondo com um "que bom" e jogo o celular de volta na cama, ouvindo-o vibrar logo depois com outra mensagem. Vou até a janela, mas não a abro devido à chuva, apenas sento no chão e acendo um cigarro. Eu não queria pensar em Moira, mas também não queria pensar na estranha vida sexual de Raphael.
Só volto a olhar as mensagens quando termino de fumar.
Raphael: Está ocupado agora?
Raphael: Preciso sair para comemorar.
Penso por um minuto. Seria bom sair de casa, me afastar um pouco da energia do lugar e clarear a mente, mas não tenho certeza se quero me encontrar com Raphael. Me pego sorrindo discretamente com a ideia de ir com ele para algum lugar e me xingo por isso.
Ian: Sair?
Raphael: É. Talvez o River City Coffee, está aberto ainda e você adora o lugar.
Penso por um segundo. Antes de toda a história do possível estupro, eu havia dito a Raph que me esforçaria para fazer as coisas voltarem a ser como eram antes. Depois que o problema dele parecia estar resolvido, cheguei a imaginar se ele ainda iria querer algum contato, quando a situação não estava mais complicada para ele. Pelo visto, parece que sim. No passado, Raphael nem precisaria me pedir duas vezes para que eu lhe fizesse companhia. Talvez fosse a hora certa para cumprir aquilo que eu havia prometido. E no fundo, eu queria sair de casa, ir para qualquer lugar.
Ian: Não sei...
Ian: Não estou nem um pouco a fim de colocar a cara nessa chuva.
Respondo, me fazendo de difícil.
Raphael: Não tem problema, eu passo na sua casa pra te buscar, de carro.
Ian: Certo. Vou estar esperando.
***
Raphael não demora. Assim que troco as roupas molhadas, ouço o som da buzina, bem em frente à casa. Desço os degraus repassando na mente se não estou esquecendo de alguma coisa. Tudo o que estou levando cabe nos meus bolsos. Minha nova ferida arde devido ao atrito com o tecido quando enfio a mão lá dentro para conferir.
Moira continua dormindo no sofá, o peito subindo e descendo de forma desritmada e estranha. Olho para o seu estado deplorável mais uma vez. Um turbilhão de sentimentos começa a emergir dentro do meu peito, saio para a chuva antes que eles me tomem por completo.
A picape azul de Raph é parcialmente visível através da escuridão da rua e da chuva densa. As gotas pesadas criam dois cones de luz quando entram no campo de alcance dos faróis. Lá dentro, a silhueta de Raphael não passa de um borrão.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Sussurro do Vento
General FictionIan Foster tem uma voz na sua cabeça. Tudo começou quando era uma criança assustada e sozinha. Aceitou a sombra que se apresentava como um amigo e desde então, Dave o acompanha. Quando cresceu, a vida de Ian se tornou uma constante tempestade. Os ví...