Samanun Anumtrakul

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Narração da Sam

    Hoje é dia trinta e um de janeiro de não importa que ano é. Você nem deve se importar com anos, mas a data é importante porque as aulas no Brasil começam sempre no início de fevereiro. E isso é importante porque eu me formei recentemente, em junho...
     Estou indo para a Escola de Magia Castelobruxo. O tempo está claro e eu estou em plena consciência do que eu devo fazer esse ano.
     Cheguei à Manaus eram quase duas da manhã. Esperei até dar o horário no aeroporto com toda a tranquilidade do mundo. O barco sairá às sete em ponto da manhã para chegar às sete da noite na escola.
    Observei as pessoas daqui. Esse é um país muito peculiar. As pessoas se abraçam e se beijam como se fosse algo normal. Não que eu nunca tenha visto isso antes, mas é que aqui eles são mais abertos que em outros lugares. Me falaram que eu deveria me acostumar. Vou me acostumar, então.
    Eu sempre fui muito fechada. Nunca gostei muito de contato humano. Meu avô me ensinou desde criança o que eu deveria ser. Eu nunca pensei que, após sua morte e após eu o decepcionar por não seguir o que ele planejou para mim desde que nasci, estaria justo no lugar ao qual ele sempre quis que eu viesse, assim como parte da família veio antes de mim. Essas tradições de família deveriam acabar, era o que eu pensava, mas estou aqui cumprindo a tradição. Só que não exatamente como ele queria.
     Gosto de pensar que a vida nos leva até onde deveríamos estar desde o princípio. E acho que estar aqui era o meu karma. O coração e a alma devem estar onde devem estar, não é? O que leva o corpo a estar no mesmo lugar. É simples, não é? Pelo menos, eu acho que é.
     Chego ao porto de Manaus no horário combinado. Ele é grande e cheio de pessoas de todos os tipos. Percebo que há muitos jovens em todos os lugares, também muitos bruxos indígenas do Brasil. Todos agindo como trouxas, se camuflando no meio deles. Se passando como um deles. E isso é bem diferente de onde eu venho, onde não existe tantas pessoas de cores tão diferentes.
    Procuro por informações. Tem um ponto na entrada do lugar que tem um rapaz parado. Consigo notar que ele é bruxo, mesmo vestido como trouxa, pois ele tem um distintivo do Governo Bruxo do Brasil no peito. É um símbolo pequeno e, pelo que eu sei, não é algo que os trouxas notam. Aliás, o rapaz se passa apenas por um cara parado no canto.
    O rapaz, funcionário do governo bruxo brasileiro, está vestido de amarelo e azul e ele me conduz para me orientar sobre como devo esperar a embarcação que me levará, e como entrar nela, pois sou uma estudante de intercâmbio, não é? É o que eu deveria ser. Pelo menos, é por quem eu me passo.
    ― Oi, eu sou a Kade. Não quer vir ficar comigo e minha amiga? ― Olho para a menina simpática falando em um português perfeito.
    ― Claro! ― Sorrio pra ela, pois é assim que eu devo agir. ― Obrigada por me guiar.
    ― Então, princesa, qual é o seu nome? Você está bem? ― Ela sorri enquanto seguimos por entre a multidão.
    ― Sou a Sam, mas você já deve saber. ― Tento ser simpática.
    ― Sei, mas queria ouvir de você. ― Ela continua a sorrir demais, o que me incomoda, pois sei que ela só está aqui por algum interesse.
    ― Mon, essa é a Sam. ― Kade sorri, enquanto me mostra para a outra menina.
    ― Oiê, tudo bem? ― Ela sorri para mim e eu analiso ela por um segundo.
    ― Oi. Estou bem e você? ― Tento ser simpática.
   ― Estou querendo ir embora logo. ― Ela revira os olhos e eu noto que ela tem algo estranho, como se tentasse mostrar algo que não sente.
    ― Nem me fala! Odeio esperar! ― Concordo com ela porque é a melhor estratégia.
    ― Você gosta do que, princesa? ― Kade sorri e eu percebo que essa aí, se eu mandar vai em qualquer lugar, pois tá querendo me conquistar.
    ― Gosto de coxinha brasileira. ― Sorrio, pois estou testando minha teoria, já que nunca comi comida brasileira na vida.
    ― Vou comprar uma pra você, princesa. ― Ela dá uma piscadela e eu fico satisfeita, pois acertei em cheio em que ela vai fazer o que eu pedir.
    Olho para Mon. Ela está ali olhando o relógio. Já é a terceira vez que faz isso. Percebo as estrelas no relógio, reconheço de onde ele vem. Muito interessante como eu acabo de chegar aqui e nem preciso procurar muito, pois já dou de cara com algo que procuro. Eu sei o que devo fazer. Devo seguir as instruções dos costumes que meu avô ensinou. Coisas que jamais pensei que teria de usar algum dia.
    ― Você fica olhando tanto para o relógio. Nossa, ele é daqueles que mostra o céu ao vivo! Queria tanto ter um desses! ― Jogo o verde para colher o maduro.
    ― Eu ganhei da minha avó. ― Ela dá de ombros como se estivesse tentando dizer que é só um relógio, mas eu sei que não é.
    ― Você parece ser descendente de asiáticos. ― Continuo jogando o verde.
    ― Sou neta de tailandeses. ― Ela dá de ombros e reconheço quem ela é, é a neta da ex-ministra da Justiça Bruxa brasileira, a Dao Hom.
    ― Jura? Eu sou coreana. ― Invento isso, pois as bandas bruxas coreanas estão fazendo muito sucesso no mundo bruxo.
    ― Pois, é... Mas sou brazuca, minha filha! ― Noto aquela coisa do brasileiro se sentir especial por ser brasileiro.
    ― Deve ser legal ser. Eu sempre quis vir pra cá e só consegui agora. Tentei antes e não tinha dinheiro. ― Brasileiro adora essa coisa de pobre, todo mundo se identifica, menos os ricos, mas sei que Kornkamon nunca viveu no luxo, ou ela não aparenta viver no luxo que a avô dela vive.
    ― Sei como é isso. A vida de pobre não nos deixa viver a vida de ricos. ― Certeiro, pois ela agiu bem como eu queria!
    ― Imagino que sim. ― Finjo estar triste com isso, mesmo nunca tendo passado aperto na vida.
    ― Aqui, princesa! Sua coxinha. ― Kade aparece e me entrega a coxinha num guardanapo cheio de óleo e eu sinto nojo, pois nada contra, só parece que tá sujo com óleo diesel.
    ― Obrigada, querida! ― Sorrio e pego a coxinha.
    ― Ainda bem que já chegou! ― Mon aponta o barco grande chegando e dou graças aos céus que vou poder jogar isso fora.
    O barco é grande e tem vários andares. Ele é branco igual a aqueles cruzeiros trouxas, Conhece? Muito grande para comportar a quantidade de alunos que vão entrar e os alunos são bem mais do que aparenta no porto, pois há feitiços da desilusão e de extensão para comportar tantos alunos do Brasil e vindos de fora, assim como eu.
     Como já disse, o porto está cheio de alunos misturados com trouxas. Os funcionários começam a organizar tudo e eu acabo me afastando das duas, pois quero jogar essa coxinha no lixo, aproveitando a mini confusão formada. Então, eu vou até uma lixeira.
    Já fomos avisados que sempre entram os alunos por série. Os primeiros alunos são os mais novos. Eles são orientados a entrar e seguir até o andar que ficarão. Eles então, se despedem dos pais animados, alguns choram, mas todos seguem para dentro do barco e os trouxas nem vêem.
    Quando chega a minha vez de entrar, pois sou intercambista e nós ficamos por último, pois vamos receber as instruções sobre como agir quando chegar até a escola, Kade pega meu braço e me puxa, logo após eu entregar o bilhete mágico e o funcionário aceitar, e me explicar sobre a escola. Não acredito que ela ficou me esperando entrar. Que merda!
     Penso que vou ter que me livrar dessa menina, pois Mon é o melhor caminho para o que eu vim fazer nesse lugar. Essa Kade só vai me atrapalhar, mesmo que ela já tenha me ajudado muito. Ela não é muito agradável, também. Por que eu ficaria com ela?
    ― Princesa, fica comigo que eu vou te ajudar. ― Ela sorri para mim toda se jogando.
    ― Podemos ir para o quarto? Eu preciso deixar minha mochila lá. ― Sim, preciso disso, mas não me importaria de ficar com a mochila, só quero fazer o que preciso.
    ― Claro, princesa! ― Ela sai andando entre os alunos e me guia até o andar em que vamos ficar.
     Subimos as escadas, entramos na porta branca e já estamos no andar do último ano. Ele fica no último e dá para ver os alunos andando pelo lugar. É uma sala enorme com dezenas de mesas que cabem uns seis alunos em cada. Mon está em uma delas e um elfo está a atendendo.
    ― Por aqui, princesa. ― Kade me chama e sigo o caminho que ela vai.
    Entramos num corredor com várias portas. Cada uma com um número para que os alunos não confundam os lugares corretos que resolveram ficar. Nas paredes, estão várias tochas encantadas para iluminar o caminho. No chão, tem um carpete vermelho enorme. Eles fazem parecer ser luxuoso mesmo.
    ― Eu acho que esse quarto não tem ninguém. Podemos ficar nós duas. Depois, eu busco a Mon. ― Ela sorri para mim.
    ― Claro. ― Dou um sorriso para concordar.
    Entro no quarto e tem seis camas com lençol branco. Três de um lado e três de outro. Está escrito num aviso que pode haver mais uma se precisar. Tem outro aviso mostrando o feitiço de transformar a cama em rede para descanso. Acho interessante, mas zero vontade de usar. Nas paredes, há mais tochas encantadas e uma janela retangular grande bem no meio da parede que dá pra ver lá fora.
    ― Vamos lá fora passear, princesa. ― Kade está sentada na cama e coloca a mochila nela.
    ― Dormiens. ― Aponto a varinha sem ela perceber e ela cai na cama em cima da mochila.
    O que não fazemos? Coloco ela numa posição como se estivesse dormindo porque deu sono. Deixo ela deitada sem cobertor em cima e vou para a porta do quarto. Já sei onde devo ir e sei o que devo fazer.
    Saio do quarto, passo pelo corredor. Alguns alunos passam por mim, alguns fazem barulho dentro dos quartos e alguns riem alto. Estão felizes por reencontrarem os melhores amigos depois das férias. Todos sabem que esse é seu último ano. Eu já passei por isso, mas o meu último ano foi só um ano. Um ano em que eu só queria me formar e sair do Japão.
    Caminho todo o corredor, até que chego no local onde estão as mesas onde Mon está comendo. Vejo ela sentada e comendo algo. Vou até ela, já sabendo que ela gosta de comer, pois a primeira coisa que fez foi ir lá comer e não guardar as coisas em um quarto, e que eu devo usar comida para me aproximar dela.
    ― Posso me sentar com você? ― Finjo estar envergonhada, pois a timidez atrai as meninas.
    ― Claro! Cadê a Kade? ― Ela parece estar interessada.
    ― Acho que foi ao banheiro. ― Finjo ter demência.
    ― Certo. ― Ela volta a comer como se não se importasse mais.
    ― O que gostaria de comer, senhora? ― Um duende enrugado de orelhas peludas e nariz enorme me olha.
    ― O cardápio, por favor. ― Ajo naturalmente.
    ― Aqui, senhora. ― Ele me entrega e eu analiso quais são as opções que possui de comidas conhecidas brasileiras que chamariam a atenção de uma menina de Minas, pois sei que ela é de lá.
    ― Vou querer pudim, pão de queijo, torta de frango, queijo com goiabada, cocada, brigadeiro, pastel de angu e pra acompanhar, um caldo de cana. Ah, quero pamonha da mineira, a que vem com queijo no meio. ― Escolho um a um dos que eu conheço, pois estudei a cultura do Brasil, e o elfo se vai.
    ― Você sabe que essa comida é paga, né? ― Ela parece estar impressionada e vejo que exagerei.
    ― Sei, sim. ― Tento agir como se não fosse nada.
    ― Você tem como pagar? ― Ela parece estar desconfiada e eu também estaria, mas preciso dar um jeito de contornar essa situação.
    ― Juntei um dinheiro. Posso pagar. Você comeria comigo? ― Chamo ela para comer para ela deixar esse assunto pra lá.
    ― Claro. ― Ela aceita e eu fico feliz.
    ― Mas me conte, como é a escola? ― Puxo papo para me aproximar, olhando ela bem interessada.
    ― Acho que é normal. A gente tem aulas de manhã. Temos uma hora de almoço, onde podemos nadar no rio. Depois, é aula à tarde. Podemos tomar banho no rio antes de anoitecer. Aí vamos para as alas da escola. A escola é uma pirâmide. Cada andar da pirâmide fica uma coisa. O topo da pirâmide é onde fica a sala da diretora, a dona Shaya Itati Paqari. Os professores são bem legais. ― Ela parece falar qualquer coisa decorada só para me enrolar, já que o normal seria ela falar que a escola é muito legal e só, mas ela falou tudo aquilo como se fosse um discurso.
    ― E qual matéria você mais gosta? ― Pergunto de novo para ver se ela continua o padrão de comportamento.
    ― Eu gosto de defesa contra as artes das trevas, mas nossa escola não tem um ensino muito voltado para isso, pois nossa fama é formar grandes bruxos que são voltados mais para plantas e animais. ― Ela parece estar sendo sincera, pq eu me deixa pensativa sobre como ela me enrolou sobre a escola e assumiu abertamente que gosta de defesa contra as artes das trevas.
    ― Entendi. ― Fico olhando para ela porque ela é interessante e eu vou gostar do desafio, também porque ela é bonita com aquele olhar frio.
    ― Aqui, minha senhora. ― O duende aparece com toda a comida.
     ― Vamos comer? ― Dou um sorrisinho já prevendo que ela vai comer feliz.
     ― Opa! ― Ela nem me espera pegar algo e já pega, o que é ótimo, um ponto para mim.

Lover (REPOSTAGEM REVISADA E MELHORADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora