Almas e Colares

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    Passei a manhã inteira com o colar dentro do uniforme, pois não me senti pronta para fazer o que deveria fazer. Fiquei com aqueles questionamentos sobre se era a hora certa, ainda mais depois da minha falha em ocultar meus poderes.
     Assim que desci os primeiros degraus, retirei ele da frente do pescoço, colocando ele para dentro do uniforme. Me deu certa ansiedade. Falta de ar, sabe? E se eu colocasse tudo a perder?
     Então, após pensar bastante sobre minha postura e atitude durante a manhã inteira, coloquei agora pouco quando fui ao banheiro na hora do almoço. Vai ser agora. Preciso seguir em frente. Não posso adiar mais por pura covardia.
     — Nossa, que colar lindo! — Misty arregala aqueles olhos grandes que ela tem.
     — Verdade, é muito lindo! — Yuki olha para ele também com os olhos arregalados.
     — Onde você comprou? — Song pergunta.
     — É de família. Meu avô me deu. Eu quis colocar porque estava com saudades dele. — Não gosto de sair mentindo para pessoas que não merecem, mas preciso fazer isso.
     — Ele te deixa muito diva. — Tabby sorri, o que me deixa um pouco feliz pelas palavras.
     — Obrigada. — Sorrio toda feliz porque a gentileza me toca de forma genuína.
     — Vamos almoçar? — Yuki parece estar com pressa para comer.
     — Claro. — Todas nós respondemos juntas.
     — Estou pensando em dar uma chance para o Mateus. — Song fica pensativa.
     — Que Mateus? — Tabby fica curiosa.
     — O do sexto ano. Ele me chamou para ir nadar amanhã. — Ela revira os olhos.
     — Quando isso? — Misty parece não acreditar.
     — Oxe, na hora do café da manhã. Você não viu, doida? — Ela fica brava.
     — Ih, eu tava sonâmbula nessa hora. Nunca estou acordada antes das onze da manhã. — Misty dá de ombros.
     Passamos pelas mesas do salão principal. Passo pela Mon e dou um olhar para ela quando ela vê meu pescoço. Ela arregala os olhos um pouco e depois deixa eles bem estreitos. Touché! Ela mordeu a isca!
     Quando nos sentamos na mesa escolhida, disfarço calmamente e observo os movimentos. São sutis, mas vejo todos se comunicando entre si. Todos reconhecem o colar. Eles sabem sobre mim. Só não sabem que sei sobre eles. E isso é a minha maior vantagem. Vou usá-la até onde puder.
     Vejo Mon se levantar. Ela deve estar indo ao banheiro. Ele também deve saber sobre mim. Ele nunca deixa passar nenhum detalhe. Nem pode deixar. Ele é o mentor, o melhor de todos os que passaram em sua época.
     Um dia, talvez, a Mon seja a escolhida e ela vai ter que ser atenta assim também. Me pergunto se ela fica feliz com isso ou não. Não sei o que dizer. Eu não ficaria. Não gostaria de abdicar da minha vida inteira para ficar aqui nessa escola todos os anos até morrer, mas há quem ame essa ideia de poder passar adiante os ideais.
     — Sam? Sam? — Sou cutucada e acordo para a vida.
     — Qual sua aula agora? — Misty pergunta.
     — Trato das criaturas mágicas. — Dou de ombros.
     — Legal, a minha também! — Tabby sorri.
     — Então, vamos juntas. — Sorrio para ela.
     — Sim, vamos lá! — Me levanto já querendo ir para aula logo.
     — Vamos! — Ela também se levanta.
     — E aí, boneca? Não quer me encontrar lá atrás da árvore do sabugueiro do sexo? Digo, seco? — Um moleque de traços latinos aparece e olha para Tabby.
     — Não, obrigada. — Ela continua andando e eu também.
     — Você não quer ser tratada como mulher? Tu é até que gostosinha. Eu tô te tratando bem. Tô te oferecendo o que nenhum vai querer. — Ele continua olhando para ela como se ela fosse um objeto.
     — Não quero. — Ela continua andando com a postura firme.
     — Depois não reclama quando nenhum cara quiser te comer. Você só se veste assim para entrar em banheiro feminino e poder agarrar mulher à força. — Ele olha para ela com raiva.
     — Olha aqui, você vai sair daqui e não voltar mais. — Fico irritada porque ela não faz nada e aponto a varinha para ele.
     — Ou vai o que, sua xing ling? Vai vender pastel de flango? Abre o olho, japonês! — Ele me olha com deboche.
     — Nada... Só repete o que disse. Repete que quero ouvir. — Olho para ele com a sobrancelha levantada.
     — Hum... — Ele tenta falar, mas não sai som algum, o que o deixa em choque absoluto.
     — O que aconteceu? — Tabby fica sem entender enquanto o moleque fica tocando na garganta sem conseguir falar.
     — Não sei... Vamos embora! — Saio andando e ela vem atrás de mim.
     — Você fez algo com ele, não foi? — Ela me olha de canto.
     — Não fiz. — Dou de ombros como se fosse verdade, mas eu fiz, logo ele volta ao normal.
     — Obrigada. — Ela sorri e faço que sim com a cabeça sorrindo também.
     Olho para trás e vejo Tatum vindo para a aula. Ela me olha parecendo não se importar e retribuo o olhar de quem não se importa. Sei que ela viu o que eu fiz e não me importo que tenha visto. Fiz para ajudar Tabby, mas é bom que ela tenha me visto. Vai comprovar que sou inteligente.
      Mas falando sério, não é que eu seja inteligente, só fui bem treinada e bem educada desde sempre. Tive acesso a conhecimentos de magia das trevas desde sempre, além das magias mais ocultas do sul e sudeste da Ásia.
     O mal dessa gente é pensar que, quando se tem dificuldade de aprendizado, não vai se aprender nunca. Quando, na verdade, se uma pessoa aprende uma forma de absorver conhecimento própria para ela, ela aprende tudo. Aprende até mais que quem se considera mais inteligente. As pessoas possuem maneiras próprias de absorção do conhecimento.
     Muitas só aprendem de forma lenta porque há uma obrigação de método de aprendizado, onde não se aceita se estudar e aprender sem que se siga os passos exigidos. E isso atrapalha muitas pessoas, fazendo com que elas sintam que não podem aprender, mas elas podem. É só encontrar o caminho melhor. Mas existem, sim, pessoas que não aprendem de forma alguma. Infelizmente, não posso dizer que não existem.
     Entramos na sala de trato de criaturas mágicas para estudar os animais da floresta e da América do Sul. Ela é uma sala cheia de verde e animais pequenos em habitats pequenos e naturais feitos em imagens com árvores e água, assim como as imagens dos jornais bruxos, só que em tamanho grande. Tem todo tipo de animal e é bem legal. Eu acho bem interessante.
     — Boa tarde, alunos. Quero que a todos saiam para termos uma aula lá na base da floresta. Hoje, estudaremos as lovirnas. As lovirnas são uma espécie de formigas da Amazônia que são do tamanho da palma de uma mão humana. As vezes, ficam um pouco maiores. Já está tudo pronto. Só precisamos ir para a base. Vamos lá. — A professora Katu Nahuel fala e levantamos da mesa.
     Descemos as escadas e vamos para a floresta. Passamos pela grama, pelas árvores e os banquinhos espalhados por todo o canto. Dá para ver melhor aqui fora quando não se tem tantos alunos andando. A gente percebe como há bastante bancos e até locais com redes penduradas lá na frente em alguns coqueiros, o que é louco porque eu nunca tinha olhado ali até agora. Só que nem daria para ver, quase nunca venho aqui fora.
     Olho, ao longe, e vejo uma adolescente me olhando lá próximo à floresta do outro lado. Ela é oriental. Seu rosto está triste. Eu a reconheço. Mas não é possível! Ela nunca seria a pessoa que escolheria ser um fantasma. Ela seguiria. Eu sei que ela seguiria!
     — Muito bem. Eu trouxe essas formigas. Elas estão dentro desses vidros para a proteção de todos, pois é uma espécie um tanto perigosa. Elas picam e cortam os pedaços. O veneno dela pode causar uma coceira que só passa com uma poção específica. Podem ouvir, ao pegar o vidro, como ela faz um barulho de batidas. São as pinças dela reagindo ao fato de ser mexida por alguém. É a proteção dela. Vocês podem observar como ela tem quatro antenas. Servem para monitorar se há predadores ou presas por perto. Elas gostam de pegar animais grandes para se alimentar. Sua preferência é comer a antaçu, a anta grande de boca comprida e patas finas. A alimentação das lovirnas é consistente de carne fresca. Bom... Vocês todos, formem duplas e anotem todos os detalhes que puderem sobre a formiga. Depois, façam um trabalho detalhado sobre quais características dessas formigas e como elas são benéficas para a natureza. Podem começar. — A professora coloca a formiga em cima da mesa cheia de formigas.
     — Por que será que ela nos trouxe aqui fora? Ela poderia nos ensinar sobre isso dentro da sala. As formigas estão presas. — Tabby comenta achando engraçado.
     — Sei, não. Acho que ela deve querer mostrar algo depois. — Dou de ombros e vejo Tatum me olhando.
     Finjo que não vejo ela me olhando e começo a escrever o que a professora mandou. Anoto tudo detalhadamente e penso sobre como essa formiga só deve ser encontrada na Amazônia. A floresta amazônica é um lugar bem doido. E essa formiga é bem importante para a natureza, mesmo sendo tão perigosa.
     — Muito bem. Faltam dez minutos para o fim dessa aula. Vou mostrar o porquê eu trouxe vocês aqui fora. Vamos soltar essas formigas e vocês verão como elas reagem quando vêem carne na frente. Wingardium Leviosa. — Ela faz os potinhos de vidro voarem até longe de nós para perto do que parece ser carne.
     Os potinhos se abrem depois que ela deixa eles descerem até o chão. As formigas saem deles e correm até o pedaço de carne bem grande que está no chão, após a professora fazer ele aparecer. Elas picam a carne toda em um minuto e correm para a floresta com ela, provavelmente indo para o ninho.
     Penso que formigas assim devem dar conta de sumir com corpos com facilidade. E somem. Não é difícil acreditar que a floresta consumiu com todas as crianças. Ela é mesmo capaz disso. Os animais ali são perigosos e essa formiga é uma prova disso.
     Subimos as escadas, pegamos nosso material e vou para a aula de poções com as meninas. Entro na sala e vejo que Mon está nela. Vou para meu lugar como quem não quer nada e vejo como ela fica me lançando olhares esporádicos.
     — Boa tarde. Peguem seus caldeirões e a varinha. Hoje, vamos aprender a poção do morto-vivo. Essa é uma poção indígena da tribo juru ipire hũva. Ou como são mais conhecidos, os juru. Essa é uma poção complexa e precisa-se de colher a mandioquinha-do-mato um dia antes da estação de outono chegar, fazer uma farinha com ela, guardar a farinha por dois anos para ela maturar. Então, se mistura com os outros ingredientes. Vocês podem pegar todos os ingredientes nas parateleiras. Vocês têm quarenta minutos para fazer a primeira parte da poção. Vocês vão deixar os caldeirões dentro do armário com a etiqueta de seus nomes. A poção precisa ficar descansando por quarenta e oito horas. Vocês precisam voltar aqui daqui dois dias e terminar de fazer ela. Os professores de vocês já estão avisados. Eu já dispensei os alunos da minha turma que viria aqui no horário. Essa poção vai valer três pontos. Tudo bem? Podem começar. — Professora Helena Albuquerque vira para o quadro e começa a anotar as coisas.
     Resolvi esperar até todos irem buscar os ingredientes. Quero pegar o meu com calma. Escolher sem ninguém ficar me olhando e achando ruim por eu demorar.
     Para se preparar poções, não é só sobre misturar os ingredientes e a hora certa. É sobre como escolher os ingredientes, sabe? E eu gosto de ser meticulosa nisso. Senão a poção fica aquela catinga da desgraça ou fica podre, verde, parecendo uma coisa horrenda que explode e voa em cima de você, e te deixa doente. Que nojo!
      Me levanto e começo a olhar os ingredientes com calma. Olho, um a um, os que têm. Observo o tamanho e o peso. Fazer poções é como cozinhar. Tem que fazer com cuidado e carinho para ficar perfeito.
     — Oi. — Mon aparece ao meu lado.
     — Olá. — Sorrio para ela.
     — Bonito o seu colar. — Ela está jogando o verde para cima de mim...
     — Ganhei do meu avô. — Sorrio como se não soubesse as tramóias dessas pessoas.
     — Bonito, ele. — Ela prefere jogar o verde do que me perguntar.
     — As luzes do céu sempre vão brilhar por aqueles que souberem encontrar as estrelas. — Falo o código porque tô sem paciência para joguinhos.
     — As estrelas sempre brilham para os que olham para o céu. Feliz por saber que você é... — Ela completa o código, o que me deixa feliz por ela não continuar com os joguinhos.
     — Também sou feliz por saber quem você é. Te reconheci desde o início. — Sorrio como se gostasse da notícia.
     — Uso o relógio para atrair os outros. — Ela age como se não fosse nada.
     — Mas você não notou que eu era. — Acho graça porque ela age como se soubesse tudo sobre tudo, mas vi a cara dela quando soube que eu era uma deles.
     — Geralmente, intercambistas não são. — Ela dá de ombros, mas nós sabemos que intercambistas são muito chamados.
     — Eu dei a dica sobre meu avô. — Faço o mesmo tom que ela.
     — Eu não peguei, mesmo. Nem prestei atenção. — Ela prefere se fazer de desentendida do que assumir e isso é um sinal que ela é arrogante e prepotente.
     — Entendo... Já vou indo para o meu lugar. — Pego meus ingredientes e prefiro sair de perto dela um pouco.
     — Espere pelo sinal. Ele virá. Tchau. — Faço que sim com a cabeça.
     — Tchau. — Vou correndo para o meu lugar.
     Coloco os ingredientes na mesa. Fico pensativa sobre ela se mostrar arrogante para mim. Não é a primeira vez. Pessoas arrogantes são um pouco alerta de fuja com força porque a arrogância é um alerta de perigo, pois são egoístas e podem te machucar sem remorsos. Só que não posso fugir. Tenho de estar perto dela, por enquanto. Espero não cair em uma cilada.

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     Quando eu era criança, minha mãe me dizia... Samanun, quando você for na escola de Castelobruxo, quando você crescer, sempre fale com o Homem do Chapéu. Eu perguntava quem era esse homem. Ela dizia que não sabia, mas que ele aparecia. Se ele aparecesse, eu não deveria fingir que não vi porque ele ficava chateado. E quando ele ficava chateado... Ninguém queria ver ele chateado!
     Pois bem, cá estou eu conversando com o Homem de Chapéu, um dos fantasmas de Castelobruxo. Ele tem uma aparência de homem trouxa da década de mil novecentos e trinta, usando aqueles chapéus da época e terno da época. É bem interessante.
     Ele gosta de falar sobre como o Rio de Janeiro era na época dele. Sobre como conheceu o cantor Noel Rosa, que foi um bruxo muito conhecido que resolveu ser cantor no mundo trouxa. Sobre como cantava o samba numa época em que não era visto como é hoje. E eu escuto bem atenta. Vai que ele fica chateado. Credo!
     — Já está tarde... A senhorita é muito gentil. Obrigada por me ouvir. — Ele tira o chapéu, faz um movimento com a cabeça e desaparece na parede quando dou um sorrisinho como se falasse de nada.
     O fantasma só quer falar, tadinho. Deve estar nessa morte, vida... Morte ou vida? Ah, tanto faz! Ele está nisso há cem anos! Se eu tivesse nisso há cem anos, iria querer falar com as pessoas também. E ia ficar chateada se elas não me ouvissem. Seja lá o que esse chateada significar.
     Mas agora que ele foi embora, vamos falar sobre a minha vida porque preciso falar da minha vida. Pelo o que eu sei, os alunos do grupo devem estar se reunindo bem nesse momento para discutir se vou poder entrar ou não no meio deles.
     Nem me importo com isso. Sei que a resposta será sim. Entrar é o mais fácil. Afinal, eu já tenho entrada garantida pelo meu colar ancestral que é dado para famílias ancestrais de extrema importância. Só que isso não garante como vou conseguir permanecer. Nem como vou conseguir agir quando tiver que matar alguém.
     Não quero matar mais ninguém, pois não é legal e as consequências são sempre ruins. Só que já matei. Matei e amei matar. Hoje, sou diferente. E é, por isso, que estou aqui. Eu me pareço mais jovem do que sou e tenho experiência de combate. Rissa não tinha. Eu estou aqui por Rissa.

Sabe de uma coisa... Eu poderia apagar todos os capítulos da Mon, mas os capítulos dela são importantes porque a pergunta que eu fiz para mim mesma quando comecei a escrever essa aqui é como a Sam vai agir sobre se apaixonar pela Mon.

Lover (REPOSTAGEM REVISADA E MELHORADA)Onde histórias criam vida. Descubra agora