Capítulo 2

600 79 12
                                    



" Quando eu recebi alta do hospital eles disseram que iríamos ter que ficar no orfanato, pois nossos tios se recusaram a ficar com a gente. O motivo eu vim a saber depois, eles tinham uma dívida de mais de vinte mil e um filho cadeirante, o Júnior. Lembro dele em uma visita que nossos pais nos levaram a casa de meu tios.

Ele não falava com a gente, ou com qualquer pessoa, só com o cachorro dele. Quando esse cachorro morreu, a vida dos meus tios virou um inferno. Meus pais nunca mais nos levaram lá.

Sem remorso nenhum de deixar a mim e ao meu irmão à Deus dará, eles viraram os rostos pra gente. Eu não estava muito contente de ir para aquele lugar, na minha cabeça eu sabia cuidar de nós dois sozinha. Ainda mais se eu conseguisse voltar pra casa e pegar um dinheiro que meu pai tinha num esconderijo. Isso se o fogo não tiver consumido a casa inteira.

Os policiais nos deixaram na recepção do orfanato com uma senhora gorda e ranzinza e foram embora. Minha atitude começou a mudar naquele ponto, eu não ficaria naquele lugar nem a pau. Arranjaria um jeito de sair dali e levaria o meu irmão comigo.

Quando elas foram designar em que ala eu ficaria, elas ficaram horas discutindo, porque não sabiam se me colocavam na ala das meninas ou o dos meninos, por eu ser intersexual. Decidiram me colocar na dos meninos, oque eu agradeci, assim eu poderia tomar conta do meu irmão de perto.

Durante uma semana eu livrava a cara do meu irmão de brigas e arranjava umas pra mim mesma. Eu não conseguia pregar os olhos a noite, pra impedir que eles fizessem uma pegadinha com a gente. O basta foi quando eles fizeram o Gustavo levar quatro pontos na testa. Eu esperei quando todos estavam dormindo e fui até a cama do garoto. Subi na colchonete e meti um monte de meia na boca dele.

Tinha pegado um meião e colocado dois sabonetes dentro, bati tanto nele com aquilo, que ele se mijou nas calças. Quando me dei por satisfeita, ameacei ele de leve e sai de cima do garoto assustado. Voltei pra minha cama e dormi ganhando o descanso dos justos.

Na manhã seguinte as mulheres horrorizadas com o estado do garoto, perguntaram a ele quem tinha feito aquilo, mas ele não me dedurou. A partir daquele momento ninguém nunca mais mexeu comigo ou com o meu irmão. Mas a vontade de sair dali ainda era grande, então eu averiguei os muros do lugar e o melhor jeito de fugir.

Contei os dia para nossa fuga e na noite marcada, enquanto todos dormiam, passei na cama do meu irmão e o tirei dela. Esgueirando pelos corredores escuros do orfanato e chegando no lado de fora, onde eu avistei a árvore que fazia divisa com o muro do lugar. Subi primeiro e ele foi logo atrás de mim. Andamos no galho que nos daria a liberdade e com facilidade ficamos em cima do muro.

Eu pulei, torcendo o meu pé, mas consegui amortecer a queda do meu irmão. Dei a mão pra ele e eu fui num ponto de ônibus pra gente ir pra casa. Ao subir no ônibus o motorista nos pediu o dinheiro das passagens. Eu não tinha, então eu inventei uma história triste envolvendo o meu irmão e ele deixou a gente pular a catraca.

O ônibus tinha umas duas pessoas naquele horário da noite. Uma delas estava com a cabeça encostada na janela e tinha os olhos fechados. Passamos por eles e fomos pro fundo e nos sentamos. Puxei meu irmão e fiquei abraçado nele, esperando o nosso destino final em silêncio no embalo do ônibus. No trajeto começou a chover, mas por sorte durou apenas enquanto estávamos lá dentro.

Acordei ele quando nos aproximávamos da parada e descemos do ônibus agradecendo o motorista. Ele fez que tanto faz com a mão e foi embora dirigindo pela rua molhada e vazia da noite.
Tirei minha jaqueta e coloquei protegendo a cabeça de Gustavo, ele estava abraçado a mim e eu só pensava em chegar logo pra saber do nosso futuro. Quando estávamos na calçada eu já podia ver a fita amarela da polícia demarcando a frente de casa e a entrada. Andamos mais devagar, um pouco chocados com a cena e eu senti a tsunami de emoção vindo, mas tinha que ser forte.

Firebird - Nascida das Cinzas - MalilaOnde histórias criam vida. Descubra agora