✞︎20-Mentirosos

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Kaylian.

Abri os olhos e me deparei com um borrão preto, tudo girava dentro da minha cabeça, me sentia enjoado pelo gosto de ferrugem dentro da minha garganta.

— Boa noite Kaylian, sou o doutor Ramiro, como se sente? - A voz masculina invadiu o ambiente e uma luz forte foi acesa.

— O que aconteceu? — sibilei, sentindo bile subir à garganta. Todo o corpo latejava de dor. O rosto acima do meu era amistoso.

— Você sofreu um acidente grave e...

— Como ele está doutor? — Era a voz do meu pai, completamente aflito.

— Está instável, talvez demore até recuperar totalmente a consciência, no entanto, precisa ficar de observação, é imprevisível, dependerá do avanço — Começou o médico.

— A cirurgia correu bem, a transfusão foi realizada com sucesso... — Sua voz foi ficando abafada e sumiu de repente.

— Doutor, quando ele recuperar a consciência, poderia não falar sobre a transfusão? Ele não sabe da verdade  Pediu Jorge, achando que eu não escutava, por estar de olhos fechados.

— Infelizmente não posso, o sangue do seu irmão é o único compatível entre vocês três, por ser o pai biológico, esse tipo sanguíneo é raro, portanto preciso informar o paciente, Kaylian já é maior de idade, é direito dele saber — Explicou o médico.

Pai biológico.

Senti o mundo desabar.

Não estava delirando, tinha escutado com todas as letras.

— Como está meu filho doutor? — A voz de Ângelo entrou no quarto, rompendo o silêncio entre os três.

— Peço que mantenham a calma, a cirurgia foi delicada, houve muitas lacerações e contusões, ele precisa descansar, então por favor, deixem certas informações para depois — Foi claro o bastante a respeito daquela conversa.

A minha vida toda havia sido uma mentira. Eles mentiram durante vinte e cinco anos da minha vida.

— Temos que contar, antes do doutor dizer — Eliza cortou o silêncio.

— Já imaginou como ele vai reagir? Não é o momento Eliza — Contrariou Ângelo. Eu só era capaz de permitir as lágrimas escorrem. Nem se eu pudesse falar muito, seria capaz de dizer algo.

— Cedo ou tarde Kay descobriria, adiamos muito tempo isso, não aja como se fosse o santo, isso é culpa sua Ângelo — Acusou Jorge, sem hesitar.

— Abaixa o tom Jorge! Sabe perfeitamente o que houve, sabe que eu não tive escolha, jamais abandonaria o Kay, ele é tudo na minha vida, então pare de dizer como se eu não me importasse nenhum pouco! — Contestou, se alterando.

— A sua irresponsabilidade afetou nós dois, principalmente a Liz e o meu filho, é tarde para querer se redimir, só porque ajudou na doação! — Disparou contra o irmão mais novo, de um jeito completamente julgador.

Mal pareciam irmãos ali.

Meu filho! Kaylian é meu filho, não importa o que diz na porra de um papel, ele sempre será sangue do meu sangue e nada muda isso! Eu sempre estive na vida dele, não vou admitir nem mais uma provocação sua! — Revidou, rispidamente.

Abri uma fresta quase imperceptível do olho, por sorte nem repararam.

— Ele é mais meu do que seu! Se depender de mim, nunca saberá a verdade! — Jorge bateu no peito com orgulho.

Tinham feito disso uma disputa? Como se eu fosse um objeto?

Os meus sentimentos não eram nada?

A cada minuto ficava pior.

Por isso as visitas praticamente toda semana, os aniversários... ele não perdiam um... o dinheiro guardado no pote vazio de bolachas que minha mãe dizia ser "reserva", era Ângelo quem dava... Os presentes, a cada vez que eu fiquei doente e Jorge não pôde me levar ao hospital, e ele se oferecia, além da faculdade... ofereceu pagar da primeira vez, quando pensei fazer direito.

A tatuagem... eles tinham feito juntos.

Tudo embaixo do meu nariz. Como pude ser tão cego?

Que tio se preocuparia tanto assim com a vida do sobrinho?

— Parem! — Exigiu Eliza, falando mais alta entre a discussão dos dois, a voz sobressaindo choro contido.

— O importante é a recuperação do Kay, o resto iremos resolver depois, nós três amamos o Kay, então vamos torcer para que ele acorde logo — Prosseguiu, os fazendo se calar.

Mal sabiam que tinha escutado tudo.

Logo os três saíram do quarto e foram conversar lá fora.

Doía tanto que meu pai parecia querer arrebentar de dentro para fora.

Enquanto chorava, mal notei Bernardo entrar no quarto.

Ele sabia?

— Você acordou! Por que está chorando? Está com dor, posso chamar o médico...

— Não! Não! Estou bem, eu só... Be, me escuta — Interrompi, pegando sua mão.

— Então por que está chorando? O que foi Kay? — Franziu o cenho, ingenuinamente, preocupado.

Eu tinha que contar a verdade, embora rasgasse meu peito. No meu coração, sempre seríamos irmãos, apesar de qualquer diferença boba, eu o amava tanto. Deveria poupa-lo, porém seria pior mais tarde.

— Eles... estavam aqui agora pouco, eu fingi estar dormindo, conversaram com o médico, tiveram que fazer uma transfusão em mim, meu tipo sanguíneo é raro, então... — Reuni forças, mal conseguia controlar o choro.

Bernardo nem sequer imaginava, era outra vítima nessa mentira toda.

— Eles mentiram a vida toda, não qualquer mentira Bernardo — Continuei, respirando fundo.

— Está me assustando Kay, me diz logo — Pediu, apertando forte minha mão.

— O sangue da transfusão era do Ângelo, o sangue dele foi o único compatível, porque ele é meu pai biológico, não somos irmãos, somos primos, não sei história toda e sei que também esconderam de você — Expliquei, odiando fazer aquilo.

Bernardo me olhou como se eu tivesse tirado seu chão.

— Caralho! Sempre mentiram para mim, mentirosos! Foram capazes de chegar a este ponto? Eu... é inacreditável... — Cedeu ao chão, pondo as mãos nos cabelos, atordoado.

Neste momento Jorge e Ângelo cruzaram a porta, vendo a situação de Bernardo e se encarando.

— Filho, o que foi? — Se aproximou, na intenção de ajuda-lo.

— Não encosta em mim! — Levantou, o afastando num tapa brusco.

— Seu irmão acordou, por que não...

— ELE NÃO É MEU IRMÃO! E VOCÊ SABIA DISSO! SEMPRE SOUBE! — Esbravejou, desvencilhando do delegado. Ângelo se mantinha calado, perplexo, até me olhar nos olhos.

— Kaylian... me perdoe... eu — Se aproximou, perdendo as palavras.

Talvez por isso sempre senti um amor incondicional diferente do que sentia por Jorge... se existisse ligação entre pai e filho, essa era a razão, sempre senti uma conexão inexplicável com Ângelo.

Agora eu só o queria longe.

Bernardo chorava sem parar, enquanto Jorge tentava lhe acalmar e conversar.

— Me larga! Você é um puta mentiroso! É uma das pessoas que mais amo e destruiu a nossa vida, tem ideia do que fizeram? Sai da minha frente! — Disparou, empurrando-o e saindo. Seu pai o seguiu sem hesitar.

— Posso pelo menos contar a história? Sei que não vai me perdoar tão cedo, mas a culpa disso foi em maior parte minha e... eu amo você mais do que tudo na vida — Espremeu os lábios, decepcionado consigo mesmo.

— Não quero ouvir nem mais uma palavra Ângelo — Impus, rispidamente.

Levaria um bom tempo até digerir tudo aquilo.

Somos feitos de sangue e mentiras [Finalizada]Onde histórias criam vida. Descubra agora