Kaylian.
Abri os olhos e me deparei com um borrão preto, tudo girava dentro da minha cabeça, me sentia enjoado pelo gosto de ferrugem dentro da minha garganta.
— Boa noite Kaylian, sou o doutor Ramiro, como se sente? - A voz masculina invadiu o ambiente e uma luz forte foi acesa.
— O que aconteceu? — sibilei, sentindo bile subir à garganta. Todo o corpo latejava de dor. O rosto acima do meu era amistoso.
— Você sofreu um acidente grave e...
— Como ele está doutor? — Era a voz do meu pai, completamente aflito.
— Está instável, talvez demore até recuperar totalmente a consciência, no entanto, precisa ficar de observação, é imprevisível, dependerá do avanço — Começou o médico.
— A cirurgia correu bem, a transfusão foi realizada com sucesso... — Sua voz foi ficando abafada e sumiu de repente.
— Doutor, quando ele recuperar a consciência, poderia não falar sobre a transfusão? Ele não sabe da verdade Pediu Jorge, achando que eu não escutava, por estar de olhos fechados.
— Infelizmente não posso, o sangue do seu irmão é o único compatível entre vocês três, por ser o pai biológico, esse tipo sanguíneo é raro, portanto preciso informar o paciente, Kaylian já é maior de idade, é direito dele saber — Explicou o médico.
Pai biológico.
Senti o mundo desabar.
Não estava delirando, tinha escutado com todas as letras.
— Como está meu filho doutor? — A voz de Ângelo entrou no quarto, rompendo o silêncio entre os três.
— Peço que mantenham a calma, a cirurgia foi delicada, houve muitas lacerações e contusões, ele precisa descansar, então por favor, deixem certas informações para depois — Foi claro o bastante a respeito daquela conversa.
A minha vida toda havia sido uma mentira. Eles mentiram durante vinte e cinco anos da minha vida.
— Temos que contar, antes do doutor dizer — Eliza cortou o silêncio.
— Já imaginou como ele vai reagir? Não é o momento Eliza — Contrariou Ângelo. Eu só era capaz de permitir as lágrimas escorrem. Nem se eu pudesse falar muito, seria capaz de dizer algo.
— Cedo ou tarde Kay descobriria, adiamos muito tempo isso, não aja como se fosse o santo, isso é culpa sua Ângelo — Acusou Jorge, sem hesitar.
— Abaixa o tom Jorge! Sabe perfeitamente o que houve, sabe que eu não tive escolha, jamais abandonaria o Kay, ele é tudo na minha vida, então pare de dizer como se eu não me importasse nenhum pouco! — Contestou, se alterando.
— A sua irresponsabilidade afetou nós dois, principalmente a Liz e o meu filho, é tarde para querer se redimir, só porque ajudou na doação! — Disparou contra o irmão mais novo, de um jeito completamente julgador.
Mal pareciam irmãos ali.
— Meu filho! Kaylian é meu filho, não importa o que diz na porra de um papel, ele sempre será sangue do meu sangue e nada muda isso! Eu sempre estive na vida dele, não vou admitir nem mais uma provocação sua! — Revidou, rispidamente.
Abri uma fresta quase imperceptível do olho, por sorte nem repararam.
— Ele é mais meu do que seu! Se depender de mim, nunca saberá a verdade! — Jorge bateu no peito com orgulho.
Tinham feito disso uma disputa? Como se eu fosse um objeto?
Os meus sentimentos não eram nada?
A cada minuto ficava pior.
Por isso as visitas praticamente toda semana, os aniversários... ele não perdiam um... o dinheiro guardado no pote vazio de bolachas que minha mãe dizia ser "reserva", era Ângelo quem dava... Os presentes, a cada vez que eu fiquei doente e Jorge não pôde me levar ao hospital, e ele se oferecia, além da faculdade... ofereceu pagar da primeira vez, quando pensei fazer direito.
A tatuagem... eles tinham feito juntos.
Tudo embaixo do meu nariz. Como pude ser tão cego?
Que tio se preocuparia tanto assim com a vida do sobrinho?
— Parem! — Exigiu Eliza, falando mais alta entre a discussão dos dois, a voz sobressaindo choro contido.
— O importante é a recuperação do Kay, o resto iremos resolver depois, nós três amamos o Kay, então vamos torcer para que ele acorde logo — Prosseguiu, os fazendo se calar.
Mal sabiam que tinha escutado tudo.
Logo os três saíram do quarto e foram conversar lá fora.
Doía tanto que meu pai parecia querer arrebentar de dentro para fora.
Enquanto chorava, mal notei Bernardo entrar no quarto.
Ele sabia?
— Você acordou! Por que está chorando? Está com dor, posso chamar o médico...
— Não! Não! Estou bem, eu só... Be, me escuta — Interrompi, pegando sua mão.
— Então por que está chorando? O que foi Kay? — Franziu o cenho, ingenuinamente, preocupado.
Eu tinha que contar a verdade, embora rasgasse meu peito. No meu coração, sempre seríamos irmãos, apesar de qualquer diferença boba, eu o amava tanto. Deveria poupa-lo, porém seria pior mais tarde.
— Eles... estavam aqui agora pouco, eu fingi estar dormindo, conversaram com o médico, tiveram que fazer uma transfusão em mim, meu tipo sanguíneo é raro, então... — Reuni forças, mal conseguia controlar o choro.
Bernardo nem sequer imaginava, era outra vítima nessa mentira toda.
— Eles mentiram a vida toda, não qualquer mentira Bernardo — Continuei, respirando fundo.
— Está me assustando Kay, me diz logo — Pediu, apertando forte minha mão.
— O sangue da transfusão era do Ângelo, o sangue dele foi o único compatível, porque ele é meu pai biológico, não somos irmãos, somos primos, não sei história toda e sei que também esconderam de você — Expliquei, odiando fazer aquilo.
Bernardo me olhou como se eu tivesse tirado seu chão.
— Caralho! Sempre mentiram para mim, mentirosos! Foram capazes de chegar a este ponto? Eu... é inacreditável... — Cedeu ao chão, pondo as mãos nos cabelos, atordoado.
Neste momento Jorge e Ângelo cruzaram a porta, vendo a situação de Bernardo e se encarando.
— Filho, o que foi? — Se aproximou, na intenção de ajuda-lo.
— Não encosta em mim! — Levantou, o afastando num tapa brusco.
— Seu irmão acordou, por que não...
— ELE NÃO É MEU IRMÃO! E VOCÊ SABIA DISSO! SEMPRE SOUBE! — Esbravejou, desvencilhando do delegado. Ângelo se mantinha calado, perplexo, até me olhar nos olhos.
— Kaylian... me perdoe... eu — Se aproximou, perdendo as palavras.
Talvez por isso sempre senti um amor incondicional diferente do que sentia por Jorge... se existisse ligação entre pai e filho, essa era a razão, sempre senti uma conexão inexplicável com Ângelo.
Agora eu só o queria longe.
Bernardo chorava sem parar, enquanto Jorge tentava lhe acalmar e conversar.
— Me larga! Você é um puta mentiroso! É uma das pessoas que mais amo e destruiu a nossa vida, tem ideia do que fizeram? Sai da minha frente! — Disparou, empurrando-o e saindo. Seu pai o seguiu sem hesitar.
— Posso pelo menos contar a história? Sei que não vai me perdoar tão cedo, mas a culpa disso foi em maior parte minha e... eu amo você mais do que tudo na vida — Espremeu os lábios, decepcionado consigo mesmo.
— Não quero ouvir nem mais uma palavra Ângelo — Impus, rispidamente.
Levaria um bom tempo até digerir tudo aquilo.
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Somos feitos de sangue e mentiras [Finalizada]
De TodoTaissa é uma estudante de astronomia que por obséquio do destino acabou se afastando de seu amigo. Quando as aulas voltaram na universidade em que estudam, os dois retomam convivência, ela acaba notando estranhos comportamentos do ex-amigo, sem imag...