05 - Deuteronômio

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Deuteronômio

Nevada, EUA, 1947

Ele encontrava-se de pé junto à janela, admirando a vista. O nascer do sol em Las Vegas era sempre algo digno de se contemplar. Do alto do quarto do hotel, podia observar parte de uma das avenidas principais da cidade, com os grandes e iluminados letreiros de cassinos ainda acesos. Terra onde o jogo era liberado e que, prosperando cada vez mais em seu caráter de oásis no meio do deserto, parecia jamais dormir. O hóspede se aproveitara dessa característica para ali chegar de carro durante a madrugada, encontrando o hotel aberto e conseguindo registrar-se na recepção sem qualquer problema. Agora aguardava o passar das horas, com o sol pouco a pouco surgindo no horizonte, para em breve tomar o avião no aeroporto da cidade que o levaria até Washington. Só mais algum tempo de ansiedade, e estaria acabado.

Nisso, ouviu passos sobre o chão acarpetado da suíte. Virando-se, deu de cara com uma camareira, vestindo uniforme típico com avental e saia que lhe conferia certo charme. Ao notar o aparente incômodo do hóspede com a visita, apenas ajeitou rapidamente os travesseiros e o lençol da cama recém-usada, avisando antes de sair:

- O café está servido, senhor Willians.

- Obrigado – ele respondeu secamente.

Antes de voltar-se de novo para a janela e a paisagem, o coronel lançou breve olhar sobre a cadeira na qual deixara sua valise. Tudo em ordem. Ficara um bom tempo segurando aquela maleta, tendo até mesmo dormido abraçado a ela, porém agora se achava mais tranqüilo. Ela não poderia, afinal, criar pernas e sair correndo do nada. Enquanto ele estivesse ali, não haveria problemas. Logo aquele inferno acabaria.

Ouviu o som da empregada fechando a porta, visão mais uma vez perdida entre os suntuosos cassinos. Jogos de azar... e pensar que vira-se subitamente envolvido num deles, mas numa escala bem maior e envolvendo bem mais do que dinheiro. Não gostava de incertezas, muito menos de pessoas poderosas que pegavam todas as fichas para si trapaceando. Estava pulando fora... No entanto, não sem antes atirar todas as fichas, com as mãos cheias, contra o ventilador da sala de jogos...

Foi quando se flagrou a pensar... Camareiras nunca entravam nos quartos de hotel para arrumar a cama ou limpar sem que os hóspedes tivessem saído. Por isso mesmo, em alguns casos, possuíam cópias das chaves de cada suíte. Amaldiçoou-se. Baixar a guarda por um mísero minuto colocara tudo a perder.

- Bom dia, coronel.

A voz masculina viera de trás de Willians, quase tão próxima quanto se o indivíduo lhe falasse ao ouvido. O sotaque era difícil de confundir: tratava-se do japonês misterioso. Guarda-costas de Lorenz.

- Veio me matar, não é, Rokubungi? – respondeu o norte-americano, voz firme, levantando as mãos.

- Eu sei apenas que documentos importantes desapareceram da base aérea na noite passada. Fotografias de Metatron e dos destroços de Roswell, uma cópia datilografada do Gênesis Apócrifo... Se está vestindo a carapuça e colocando-se como responsável pelo roubo, nada posso fazer a respeito.

O sujeito era traiçoeiro. Assim como seu superior. Willians sabia que tinha poucos instantes de vida pela frente, mas ainda assim queria usá-los com cuidado.

- Sou apenas o primeiro, Takeo. Outras pessoas, vinculadas ou não ao Majestic-12, virão e tentarão expor tudo à imprensa. Não é tão fácil guardar segredos. Ainda mais quando se relacionam com a vida de bilhões de pessoas.

- Quantos outros tentarem, serão todos detidos – o oriental não perdia a frieza, e o coronel conseguia imaginar a inexpressão em sua face mesmo sem poder fitá-la. – Somos guardiões da Verdade Divina. Ela não será revelada ao mundo enquanto o momento propício não chegar.

- Por que segue as ordens daquele homem? Quanto ele lhe paga? Acha mesmo estar do lado certo?

- Existe lado certo, coronel? Meu povo massacrou centenas de milhares de chineses, para então ter centenas de milhares dos seus aniquilados pelas duas bombas atômicas que seu povo usou contra nós. Alguém está correto nessa história? Ou o problema é o próprio ser humano, que chegou ao fim da linha e continuará cometendo arbitrariedades enquanto não encontrar a Verdade?

- Esse discurso religioso é tão doentio como aquele Lorenz...

- A Verdade incomoda os ouvidos daqueles que relutam em nela acreditar.

Willians sentiu o frio cano da arma em sua nuca. As palavras seguintes de Rokubungi foram proferidas em tom ainda mais gélido:

- Não faço isso por Lorenz, muito menos pela humanidade. Acima de tudo... faço isso por mim, coronel.

O disparo veio, ecoando por todo o hotel e arredores.

A mesma camareira que há pouco adentrara o quarto, pressionada pelo perigoso homem armado, voltou ao mesmo gritando desesperada. Encontrou somente o cadáver do militar caído junto à janela, cabeça ensangüentada... e as cortinas tremulando, como se quisessem denunciar que alguém passara por elas para fugir.

A caneca de café subiu rápida, foi sorvida e voltou para a mesa na mesma velocidade. Lorenz instruíra Lianna terminantemente a não consumir alimentos ou bebidas durante o trabalho com os manuscritos, pois um leve descuido poderia levar à destruição de um ou mais pergaminhos. A tarefa vinha se mostrando tão intensa, porém, que a doutora optara por reduzir o tempo gasto até então com as refeições deixando para fazê-las enquanto estudava os documentos. Por semanas adotara esse hábito sem acidentes, até que o inevitável aconteceu: cansada e distraída, esticou uma das mãos para apanhar de novo a caneca, sem olhar, e acabou virando-a sobre um manuscrito aberto.

- Scheisse! – praguejou, certa de que o coronel a devoraria viva.

Ela afastou o pergaminho molhado, mas já era tarde: o café dissolvera praticamente todo o material. Ao menos aquele era um trecho não tão importante do texto completo, sem profecias, e eles tinham tudo datilografado. O valor histórico daquela peça, porém, era incalculável – sem contar que se perdera a fonte primária. Sendo uma arqueóloga, Soryu sentiu na alma o golpe...

Até que algo lhe chamou atenção.

Por mero acaso do destino, a região central do manuscrito permaneceu seca, o café tendo consumido somente as bordas. E essa região justamente continha um texto que, agora separado dos trechos vizinhos, acabava fazendo maior sentido sozinho...

- Símbolo da punição de Deus contra os Anjos é a Lua, e o homem deve prestar reverência à sua grandeza – leu ela em voz alta, já acostumada aos caracteres antigos. – A Lua, em seu semblante, foi marcada pela terra revolvida com a chegada do Fruto de Lilith, os grãos de poeira manchando seu disco, símbolos da Verdade Divina e epitáfio de Abuzohar.

Epitáfio... nome dado à frase ou texto colocados em túmulos de pessoas. Se havia epitáfio... haveria uma tumba? De Abuzohar? Tal nome não lhe era por completo estranho... já ouvira alguma vez, quando estudava hebraico...

Estremeceu. O impacto da descoberta fez até com que se levantasse da cadeira. Uma das lacunas dos manuscritos era preenchida. O plano de Lorenz de enviar arqueólogos pelo planeta atrás dos possíveis Anjos adormecidos não pudera ainda começar, já que não possuíam qualquer pista da localização de algum...

Agora sabiam de uma. Mas não seria tão fácil atingi-la...

Existia um Anjo, Abuzohar, enterrado na lua.

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