36 - Proteção?

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Pov Marília Mendonça

(Sete Anos ANTES

Vinte e sete pontos na cabeça. 

Lauana segurou a mão de Eddie o tempo todo, mesmo que eu não pudesse chegar perto nem meio metro. De alguma forma, ela quebrou uma barreira invisível que Eddie impunha às pessoas e conseguiu se aproximar dele. 

Olhando para ela, acho que não deveria ter me surpreendido. Lauana era linda e afável, doce e convidativa. Que homem, em pleno juízo, rejeitaria o seu toque? 

O médico da emergência que havia suturado a cabeça de Eddie pediu para falar comigo do lado de fora da sala de exames. 

— Ele tem uma série de cicatrizes recentes no rosto e na cabeça. Esta com certeza foi feita com uma lâmina. O pedaço de pele foi cortado com uma borda serrilhada. Provavelmente, uma faca de cozinha. Se o corte tivesse sido um pouquinho para direita, ele teria perdido o olho. 

Olhei de volta para o quarto. Os pontos que Eddie tomou iam da testa ao queixo. Seu olho direito estava fechado de tão inchado dos golpes que levara na noite anterior. 

— Eddie não fala muito — expliquei. — Mas achamos que foi um grupo de adolescentes. Aparentemente, é um jogo deles. Ganham pontos por danos causados a pessoas sem-teto. 

— Ouvi sobre isso no noticiário. Me deixou assustado pelo futuro da sociedade. — O médico balançou a cabeça. — Ele foi à polícia? 

— Lauana tentou levá-lo. E ela foi algumas vezes por conta própria, tentou fazer um boletim de ocorrência em seu nome. Eles não parecem se importar. 

— Você pode levá-lo a um abrigo? 

— Ele vai a um para fazer as refeições. Foi assim que Lauana o conheceu. Ela é voluntária no lugar onde ele geralmente come. Mas Eddie não dorme lá. Quando as mesas para o jantar estão cheias, ele pega a comida e come sentado na esquina, longe de todos. Ele não consegue lidar com as camas tão próximas umas das outras no abrigo. Ele não gosta de pessoas tão perto. 

— Se isso continuar, ele vai acabar morrendo. Precisa ao menos se proteger. Ele não tem ferimentos de defesa nas mãos nem nos braços. 

— Ele não está se protegendo? 

— Parece que não. Ou ele é o agressor, ou fica encolhido no canto, enquanto alguém o chuta repetidamente. 

— Ele não é o agressor. 

— Então você pode tentar falar com ele sobre se defender. Senão, ele vai acabar com o crânio rachado. 

Fiquei mal por Eddie – mesmo! Mas, para ser sincera, essa não foi a razão pela qual visitei o abrigo na tarde seguinte. Fui por Lauana. Tudo bem e também por mim. Eu precisava que a situação melhorasse. 

Havia uma equipe de construção abrindo paredes para expandir meu novo espaço no escritório, uma sessão de fotos em um estúdio improvisado no laboratório de pesquisa e eu acabara de contratar dois novos funcionários nesta manhã. 

O interesse em novos produtos mantinha a recepcionista ocupada o dia todo. Estava me afogando em trabalho, mas lá ia eu conversar com um sem-teto sobre autodefesa. 

Eu sabia que Lauana tinha uma audição e não estaria no abrigo. Imaginando que Eddie prestaria mais atenção ao que eu tinha a dizer se não houvesse distrações, cheguei pouco antes do início do jantar e esperei lá fora. Ele mancou pelo quarteirão, bem no horário. 

— Ei, Eddie. Podemos falar um minuto? 

Ele olhou para mim, mas não disse nada. Seria uma conversa rápida de verdade, com só um de nós falando. 

— Vamos lá. Vamos pegar algo para comer antes que fique cheio lá dentro e podemos conversar durante o jantar. 

Deixei Eddie escolher onde queria se sentar. 

Obediente, com a bandeja na mão, fui até o canto mais distante do refeitório. Eu não me sentei em frente a ele, insegura da proximidade com que ele se sentiria confortável. Em vez disso, me sentei na diagonal, apesar de não ter mais ninguém ao redor. 

— Lauana se preocupa muito com você — eu disse a ele. 

Senti que era uma boa maneira de lidar. Eddie fez contato visual, algo que ele raramente parecia fazer. Como tive sua atenção, segui. 

— Ela fica muito chateada quando você se machuca. Por que não se protege, Eddie? Você não pode deixar esses garotos chutarem você, machucarem você. 

Ele remexeu a comida. Aparentemente, a menção de Lauana era digna de toda a sua atenção. Então, usei isso. 

— Lauana quer que você se proteja. 

Novamente, isso o ajudou a se concentrar em mim. 

— Ela quer que você cubra a cabeça quando apanhar. Ou saia quando eles vierem. Você pode fazer isso por ela, Eddie?

Ele olhou para mim. 

— Você tem alguma coisa para se proteger? Você é um cara grande. Talvez um pedaço de metal? Um cano? Algo que você possa manter no bolso para assustá-los? 

Fui pega de surpresa quando ele falou: 

— Faca. 

— Sim. — Olhando seus novos pontos, assenti.

— Eles pegaram você de jeito, não foi? 

— Faca — repetiu. 

— É por isso que você precisa se proteger. O médico disse que você nem está levantando as mãos. Não está se protegendo da faca.  

Ele repetiu novamente: 

— Faca. 

Ocorreu-me, então, que ele não estava me dizendo o que aconteceu, estava me pedindo ajuda. 

— Você quer uma faca? É isso? 

Levei um baita susto quando ele colocou o braço sobre a mesa, com a palma aberta.

— Faca. 

— Não tenho uma faca. — Olhei para as mãos dele. Estavam sujas e com cicatrizes. Até as mãos haviam sido golpeadas. 

— Espere. Na verdade, eu tenho. 

Colocando a mão no bolso da frente, tirei o pequeno canivete que eu levava comigo desde sempre. Era um canivete suíço do Exército, com cabo de nogueira. Comprei em um bazar quando tinha mais ou menos doze anos. 

Estavam gravadas na madeira as iniciais S. E. e havia uma pequena fenda ao lado do E que fazia um X perfeito, do mesmo tamanho que as iniciais. A coisa era antiga, e a lâmina tinha uma lasca. 

Basicamente, eu tinha comprado porque parecia estar escrito SEX.... e eu tinha doze anos.  

Ao longo dos anos, costumava usá-lo como abridor de garrafas. Olhei para Eddie e depois para o canivete, hesitando. Algo sobre oferecê-lo não pareceu certo. Mas era o mínimo que eu podia fazer.

Ele me deixou colocá-lo na palma da mão e a fechou. 

— Seja cuidadoso. Não use isso para nada além de proteção. Ok, Eddie? 

Ele nunca concordou.

Minha Chefe Criativa - Malila | G!pOnde histórias criam vida. Descubra agora