II - Certezas Abaladas

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Muitas semanas antes, um forte resfriado forçou Éden a ficar na cama. Deitada sob as cobertas puxadas até o pescoço, ela os ouviu chegar. A porta da frente rangeu e vozes diferentes soaram agitadas. Éden se jogou para fora do seu casulo e caminhou silenciosamente na ponta dos pés pelo andar de cima, empoleirando-se no topo da escada para ver e ouvir a conversa.

Seu pai entrou em casa às pressas na companhia de uma mulher de longos cabelos loiros e penetrantes olhos azuis. Sua longa capa preta cobria parcialmente o colete justo sobre uma camisa branca de mangas longas. Calças justas e botas de couro com fivelas prateadas completavam as vestimentas incomuns para aquela região. Semelhantes as roupas dos integrantes de legiões de combatentes que volta e meia passavam por Petras, indo em direção às Terras de Gelo em busca de feras das montanhas. A pele das criaturas era bem valorizadas, dado a dificuldade de adquiri-las.

Jogando a capa para trás, a mulher sentou-se em uma das cadeiras ao redor da mesa da cozinha e seguiu os movimentos de Aristheu com o olhar enquanto este soltava pesados livros sobre uma pilha já alta no canto da entrada, fazendo-os oscilar. Ameaçaram despencar antes de ficarem imóveis.

— Você não deveria ter vindo aqui — criticou Aristheu, virando-se para encará-la com olhos desconfiados.

— Não tive escolha — Ela suspirou. Ambos sustentavam expressões cansadas e preocupadas.

Aristheu bateu as palmas das mão sobre as coxas, livrando-se do pó preso a elas. Cruzou o espaço pequeno entre a porta e a mesa, parou em frente aos armários e arrastou dois copos para perto. Na ponta do pé, retirou da mais alta prateleira uma garrafa de vidro. Encheu os dois copos até a metade com um líquido âmbar. Uma bebida de cheiro forte que Aristheu só bebia quando encontrava-se frustrado com algo ou alguém.

— Theu? — chamou a mulher. A abreviação do nome do pai soou íntima aos ouvidos de Éden, ainda agarrada ao alto da escada, observando tudo. — Ele está perto.

As palavras mal deixaram a boca da mulher e os ombros de Aristheu se encolheram, tensos. Seus dedos se fecharam com mais força em volta dos copos e o líquido se agitou em seu interior. Ele manteve os olhos baixos, escondidos sob os cílios. As sobrancelhas tão franzidas e juntas que quase formavam uma só. Sombras em seu rosto o deixaram com uma aparência tenebrosa, quase perigosa.

— A seguiram?

— Tentaram. Os despistei ao leste, antes de atravessar a Ponte do Inferno — respondeu ela.

Meio cambaleante, Aristheu se aproximou da mesa, arrastou as bebidas até o meio dela e apoiou as mãos na borda da madeira gasta. Ao erguer o olhar, fixou-os no rosto da convidada inesperada.

— Ele sabe?

— Acredito que não. Mas, Theu? — Ela remexeu-se inquieta sobre o assento antes de levar as mãos às costas e puxar algo para fora da capa. — Temos problemas.

Um fina e desgastada flecha partida ao meio foi jogada sobre a mesa, caindo com um baque curto. Ambas as partes tinham ranhuras em forma de heras selvagens. As penas da cauda estavam falhas, algumas foram arrancadas. A ponta de ferro, destruída. Ainda manchada de sangue.

— Isso é... — murmurou Aristheu sem conseguir desviar os olhos do objeto a centímetros de suas mãos.

— Sim.

— Onde? — Ele inclinou-se sobre a flecha arruinada. Em seu rosto o medo dava lugar à raiva.

— Nas florestas, a leste de Cormalhiya. Atravessou o coração de um dos meus oficiais.

— Ele estava sozinho?

— Alguns guardas o acompanhavam em uma caça a raposa. Lorde Bergues caiu do cavalo e quando foi socorrido... era tarde demais.

Solstícios de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora