XVII - 1 + 1 = 3

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Os dias passaram lentamente. A noite de sua partida foi a primeira e única na qual Éden pôde caminhar pelo navio. Confinada à sua cabine, ela via o céu e o mar pela pequena janela redonda. Ouvia o bater das ondas contra o casco e os passos dos soldados do lado de fora. Três vezes ao dia Éden era levada até a latrina para se aliviar e como um paleativo para os banhos, lhe foram entregues uma bacia com água limpa e duas toalhas. Também três vezes ao dia, um dos dois guardas pessoais de Kain batia a sua porta com um prato de comida. Seu nome era Kenneth.

— Está tão ruim assim? — perguntou ele ao entrar com mais uma refeição. Éden olhou para o prato nas mãos do guarda e achou que vomitaria em cima dele se chegasse mais perto.

— Tira isso de perto de mim — disse ela com a mão em frente a boca e nariz. O chás que eram mandados para ela não surtiam mais tanto efeito, forçando-a engolir o mal-estar sempre que sentia seu estômago embrulhado.

Kenneth riu e ergueu o prato sobre a própria cabeça.

— Ficará feliz em saber que estaremos entrando em território Alemarino em poucos minutos.

— Graças aos céus — suspirou ela, deixando-se cair sobre o colchão.

— Na verdade, agradeça ao Theo. Ele é o capitão. — Kenneth levou o prato consigo até a porta, apoiou-se na madeira e sem dizer nada começou a comer. Éden o observou saborear a comida com gosto enquando o cheiro dos ovos cozidos pairavam no ar. Notando que ela o encarava, ele limpou os cantos da boca na manga da camisa escura e voltou-se para ela. — Sem desperdícios no navio de Kain Belliari. Essa é a regra. Ele me faria lamber até as migalhas se eu voltasse com o prato intocado. Principalmente quando é a vez dele de cozinhar.

— O quê? — Éden levantou os olhos, a surpresa evidente em seu rosto pálido. — Kain cozinhou isso?

— Todas as suas refeições foram feitas por ele. Não me lembro quando foi a última vez que o vi tão empenhado em acertar o ponto do pão. — Um leve sorriso surgiu nos lábios do guarda. — O que disse que para ele no jantar?

— Eu reclamei do gosto do vinho — Éden ajeitou-se sob os lençóis, lembrando-se de resistir à ideia de compartilhar uma refeição com Kain. Ela estava faminta, mas não abaixaria sua guarda por um mero pedaço de torta. Não valia o risco.

Kenneth deu de ombros e voltou sua atenção a refeição. Éden permaneceu em silêncio, escutando o mastigar de Kenneth e processando suas palavras. Era isso o que ele estava tentando fazer, exigindo obediência em troca de uma cama confortável e uma boa refeição? Ghris havia feito o mesmo com ela e assim como tudo lhe foi dado, tudo também lhe foi tirado.

"Ele não é diferente dos outros, Éden".

O som das ondas contra o casco do navio ecoou como um lembrete constante do lugar para onde estava indo. Éden fechou os olhos por um momento, acalmando sua mente tumultuada. Havia se decidido antes mesmo de abri-los novamente. Kain estava com sua adaga e ela a queria de volta. Buscaria respostas para suas perguntas e ao descobri-las, fugiria sabendo que sua vida pertencia a si mesma e, apenas, a si mesma.

— Você o cumprimenta como majestade, mas fala dele como se fossem muito próximos. — Éden arriscou um olhar despretensioso, o que funcionou muito bem. Kenneth gostava de falar e Éden estava disposta a ouvir tudo o que ele pudesse lhe oferecer de informações.

— Nos conhecemos ainda crianças. Meu pai treinava os cavalos da família Belliari e criava... outros tipos de criaturas para eles. O rei Archer achou que seria uma boa ideia mandar o filho para algumas semanas de férias na nossa casa. Imagine como é ter um príncipe acostumado a regalias vivendo em uma cabana simples no meio da floresta.

— Então, vocês são amigos?

— De certa forma. Ainda devo prestar contas a ele, mas nada me acontece quando entramos em uma discussão. Que isso fique entre nós, ele é um pé no saco. Principalmente quando está de mal humor. — Kenneth engoliu o último pedaço de pão torrado, juntou os talheres sobre o prato vazio e o deixou sobre o baú ao lado da porta. — Um conselho: se o pegar bebendo, saia de fininho e mantenha-se longe até que o efeito do álcool passe.

— Por quê? Ele sobe em mesas e canta músicas ruins?

— Digamos que as coisas podem ficar feias para o seu lado. Faça o que digo e me agradecerá depois. — Éden observou os olhos amendoados de Kenneth sob as mechas longas do cabelo loiro escuro se estreitarem, sorrindo junto com seus lábios. — Sabe, depois de ouvir sobre a Corte dos Assassinos, eu esperava que você fosse mais...

— Assustadora? Sanguinária?

— Algo do tipo — disse, aproximando-se da cama. Sem convite, sentou-se.

— Desculpe decepcioná-lo — disse ela. Kenneth gargalhou, levando Éden a sorrir.

Kenneth tinha um humor contagiante e quando franzia a testa, o fazia sem nenhum indício de hostilidade. Não carregava a expressão de dever a ser cumprido que Kain tanto gostava de exibir. Mesmo com uma espada presa ao cinto como todos os outros, Éden mal conseguia se sentir ameaçada por ela. Com ele, ela quase podia ficar à vontade.

— Talvez possa me contar o que é verdade e o que inventaram.

Acomodada no centro do colchão, ela ruminou a sugestão.

— E como sabe que não vou mentir?

— Terei que confiar em você — Kenneth se inclinou para mais perto dela e abaixou a voz como se estivesse prestes a contar um segredo e temesse que as paredes pudessem ouvir. — Em troca, contarei o que quiser saber.

— E como eu sei que não está mentindo?

— Então será sua vez de confiar. Afinal de contas, acabei de delatar parte da infância do meu senhor. Deve valer algo para você.

Kenneth estendeu a mão para ela. Éden ponderou. Por fim tomou a mão do guarda na sua e a apertou, firmando o acordo. Minutos depois ouviram o barulho do mar enfraquecer, os relinchos dos cavalos, as correntes sendo arrastadas e os soldados anunciando sua chegada à costa de Alemar. Kenneth se levantou, arrumou o colarinho da camisa, reafivelou a bainha da espada e abriu um leve sorriso ao indicar o lado de fora com um movimento de cabeça.

— Hora de conhecer seu novo lar, mercenária.

Solstícios de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora