🎗 Recomeços 🎗

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Eu amo dias chuvosos. E quando eu digo que amo é porque eles me trazem conforto quando estou na minha cama quentinha, assistindo a uma comédia romântica e não no metrô lotado. Agora eu odeio a chuva porque sei que saindo da estação vou caminhar mais três quadras até chegar no meu prédio toda ensopada, cheirando a cachorro molhado.

Amo cachorros! Aliás, os bichos são infinitamente melhores que nós. Nós falhamos no meio do processo. Falhamos o tempo inteiro seja com nós mesmos ou com as outras pessoas. Eu odeio falhar com os outros mas deveria ter mais ódio ainda de ter falhado tanto comigo.

Por isso só sobrou o meu doguinho depois da tempestade. Ele não falha comigo e nem eu com ele. Talvez seja a única relação saudável da minha vida. Eu não me dou bem com pessoas. Por isso estou justamente voltando da terapia. Pessoas se tornaram o meu maior desafio e eu não sei se estou pronta pra elas novamente. Aliás, o único motivo pelo qual eu estou na terapia é porque o meu oncologista me obrigou. Eu só queria que ele me desse remédios pra dormir a noite e me manter bem durante o dia mas ele insistiu que eu precisava de ajuda pra entender tudo o que estava acontecendo comigo. Eu não queria ajuda! Era fácil entender o que tinha acontecido: eu vivi por muito tempo em um relacionamento tóxico por conta da minha carência familiar, tive um câncer de mama e adivinhem? Fiquei sozinha.

Dizem que antes só do que mal acompanhada e isso é a mais pura verdade. Na minha concepção eu estava lidando bem com isso mas para o meu médico era visível que não.

Nunca me senti a mulher mais linda do mundo mas sempre me achei bonitinha até o câncer me tirar os cabelos que eu adorava, sobrancelhas, uma mama que foi reconstruida com cicatrizes e silicone e me deixar pálida e gelatinosa porque eu também estava entrando em um processo forçado de menopausa precoce para que os meus hormônios não me dessem outro câncer de presente.

Então essa era eu, praticamente, nascendo de novo e tendo que ser muito grata por não ter morrido.
Olho em volta e, graças a Deus, as pessoas voltaram a não me notar. Quando eu estava em tratamento, usando lenços na cabeça, elas me olhavam como se olha uma aberração. Não sei se com um misto de piedade e medo de que elas tivessem o mesmo que eu.

A voz da mulher anunciou a minha estação como sendo a próxima. Dei graças a Deus, mesmo sabendo o corre que seria até chegar em casa. Um senhor mais apressado que eu me deu um empurrão para subir a escadaria correndo e eu nem fiquei brava.
Apenas gostaria de ter metade da sua vitalidade. Subi dois lances de escada no meu tempo até sair na rua molhada e fria. Estava sem a minha jaqueta porque, quando saí de casa pela manhã, estava um calor infernal. Amadora! Ao longo dos meus 30 anos eu já deveria entender o clima desse lugar. A chuva não estava tão pesada então não foi um sacrifício tão difícil andar debaixo dela. Nessas horas eu nem lembrava que a minha imunidade ainda não era lá essas coisas.

O meu bairro era estratégico pra quem precisa encarar a vida corrida de uma cidade grande. Era próximo à estação do metrô e tinha um comércio local bastante desenvolvido, evitando que eu me deslocasse para o centro sem necessidade. Óbvio que eu pagava o preço por isso. O meu aluguel quase me infartava todo mês mas eu ainda não tinha condições de ter o meu ap próprio. Talvez eu nem quisesse mesmo ter um lugar só para o resto da vida.

O meu apartamento era em um prédio antigo mas altamente charmoso em uma rua arborizada, o que tornava a vista da minha varandinha minúscula o máximo. Meu lugar favorito pra tomar um cafezinho em dias fresquinhos e nublados. Havia poucos meses que eu me mudara pra cá, após ter terminado o meu relacionamento e pegado duas malas de roupa apenas, saindo careca e sem olhar pra trás. Não queria trazer nada comigo além do que restou de mim.

Eu estava disposta a começar do zero, lambendo minhas feridas emocionais até que elas cicatrizassem. Com cicatrizes eu lido bem mas as feridas doem. Ainda doía mas agora eu sabia que era eu por mim, sem expectativa que alguém me salvaria de tudo o que eu estava passando. Expectativa é uma merda! Cumprimentei o rapaz da portaria e subi mais escadas até o terceiro andar.

Abri a porta e lá estava ele abanando o rabinho pra mim. Eu jurava que ele sorria. Sorri de volta, tirando o meu all star vermelho e sentei no chão. Pitico veio correndo lamber as gotas de chuva do meu rosto. Era um pinscher com menos de dois kilos e muito amor. Amor por mim porque bastava ouvir qualquer barulhinho diferente que ele virava um monstro. Eu me divertia com isso. Dei um 360 pelo apartamento pra ver o que precisava ser feito e suspirei fundo.
Não era a louca da limpeza mas era virginiana e minhas coisas precisavam estar em ordem. Pelo menos na minha casa, já que internamente eu era pura bagunça sentimental.

Fui tomar um banho antes e comer alguma coisa pra dar força. Lavei a louça, enchi a garrafa com água do meu filtro de barro. Sim, eu tinha um. A minha casa era vintage, parecia casa de vó e era o que me trazia conforto. Montei a decoração a base de brechó, garimpando a história dos outros. Isso também me distraia de uma depressão que sempre esteve ali pendurada. Como eu não tinha amigos que não fossem colegas de trabalho, fora a Sarah e o Miguel, eu não tinha muito o que fazer aos finais de semana e então ficava pesquisando feirinhas e brechós para visitar.

Molhei as plantinhas e fui escolher um filme pra assistir. Estava aproveitando, se é que aproveitar seria a palavra correta, os meus últimos dias de licença do trabalho. Eu estava afastada ainda por causa do câncer. Me dava até agonia imaginar a volta, apesar do meu trabalho ser tranquilo em vista de outros que eu já tive.

Eu era revisora de uma editora famosa de livros e passava o dia praticamente lendo. O que me dava nos nervos era apenas os prazos relativamente curtos que nós tínhamos para revisão mas o nosso chefe, o Sr Marcelo era um amor de pessoa e sempre fazia vista grossa. Aliás, ele foi muito compreensivo com tudo o que eu enfrentei.

Além dele, a Sarah da recepção era uma pessoa que eu tinha como amiga com a expressão mais verdadeira da palavra. Ela havia me acompanhado durante todo o meu tratamento e até se mudou pra cá quando precisei fazer a cirurgia para me ajudar. Devo muito a ela, apesar dela nunca ter me cobrado. Foi ela também que me ajudou a tomar a decisão de dar o tiro de misericórdia no meu relacionamento. Ela odiava a forma indiferente com que o Felipe me tratava. Segundo ela, e hoje eu concordo e enxergo, ele era um filhinho da mamãe que jamais saberia lidar com a complexidade de um mulherão feito eu.

Mas Sarah tinha a sua vida, sua família e eu tentava incomodá-la o mínimo possível. Então, na maior parte do tempo, era somente eu e o Pitico. Pra mim era o suficiente, pois eu estava muito machucada ainda para colocar outra pessoa na minha bagunça.

Olá, meus amores! 💞

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Olá, meus amores! 💞

Espero que estejam gostando da história da nossa guerreira. Tenho um carinho especial por esta personagem, também por motivos muito especiais.

Ela ainda tem muitas feridas a serem cuidadas ao longo dessa história e espero que me ajudem a cuidar com carinho de cada uma delas.

Beijos e boa leitura! 🫶😘

Sophia 📚☕️Onde histórias criam vida. Descubra agora