𝐷𝑂𝑍𝐸

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             DOZE


Wuxian
Leilani não era uma mulher. Era um barco.
Um lindo veleiro.
Wangji  ajudou o avô a embarcar, depois estendeu a mão para mim.
— Obrigado — falei ao pisar no deque da popa.
O avô dele desapareceu imediatamente na cabine.
— Ele vai ouvir Frank Sinatra. Às vezes esquece a esposa. Às vezes desliga de tudo e fica à deriva. Mas ele nunca esquece este barco ou Frank.
Olhei em volta estudando a ampla área de estar.
— Dá para entender por quê. Este barco é incrível.
— Obrigado. Meu avô o construiu há quase sessenta anos. Ele me deu o veleiro de presente quando fiz vinte e um anos.
— Ah, que presente especial.
— Ele construiu o veleiro para ser uma amostra para vender barcos e conseguir encomendas quando fundou a fábrica. Pegou o dinheiro emprestado com um agiota que ameaçou quebrar suas pernas se ele não devolvesse tudo. Mas vendeu mais do que poderia construir na primeira vez que exibiu o barco em uma feira especializada. — Wangji  riu. — O neto do agiota tem o modelo mais novo, e meu avô joga baralho com o agiota, que hoje mora em uma clínica de repouso.
Olhei para o logotipo na lateral do veleiro.
— Não sabia que sua família era dona da Lan Craft. Não sei muito sobre barcos, mas os deles são realmente lindos. Vejo em filmes de vez em quando.
Wangji  balançou a cabeça.
— A empresa não é mais da minha família. Temos ações da companhia desde que abrimos o capital na bolsa, mas ela é pública há algum tempo. Meu avô continuou no comando depois da venda, mas se aposentou há dez anos, depois de se convencer de que o novo administrador era tão apaixonado pela construção de barcos quanto ele. Ele e minha avó mantinham um barco grande na marina, mas o mandaram para o estaleiro alguns anos atrás, quando ele recebeu o diagnóstico. Este aqui é especial para ele, por isso ele gosta de vir visitá-lo.
Sorri.
— É compreensível.
Frank Sinatra começou a cantar no sistema de som, e um minuto depois o avô de Wangji  saiu da cabine. Ele segurava uma caixa de charutos em uma das mãos e um charuto aceso na outra. O roupão estava aberto, revelando camiseta e cueca boxer brancas.
— Vô, por que não fecha o roupão?
O homem entregou a caixa a Wangji  e apontou para mim com o charuto.
— Você parece aquele ator... — Ele estalou os dedos algumas vezes, tentando lembrar. — Como ele chama... sabe quem é? — Estalou e estalou. — Aquela com grandes...
Eu achava que sabia aonde ele queria chegar. Porém, depois de estalar os dedos mais algumas vezes, o homem gritou:
— Aquele com grandes bolas !
Wangji  e o avô quase morreram de rir. Eu não entendia o que eles tinham achado tão engraçado, mas vê-los assim me fez sorrir. Também notei quanto Wangji  ficava diferente quando estava relaxado e sorria de verdade. Parecia muito mais jovem, menos intimidante.
Wangji  ainda ria quando explicou o que era tão engraçado.
— Há alguns anos, levei meu avô para comprar sapatos. Ele estava começando a ter problemas de memória e queria sapatos com palmilhas de sustentação, mas não conseguia lembrar as palavras “palmilhas de sustentação”. Por alguma estranha razão, ele achou que a palavra que procurava era “bolas” e acabou gritando que queria “bolas”.
Ele enxugou as lágrimas dos olhos.
— O vendedor riu muito e desde então meu avô passou a substituir as palavras que esquece por bolas. É interessante porque ele sempre consegue se lembrar de “bolas”, mas não da palavra que procura. Enfim, sempre acabamos morrendo de rir com isso.
Eu achava que ficar muito perto do arrogante, confiante e lindo Wangji  era perigoso, mas ver como ele era carinhoso com o avô e quanto guardava com ternura os bons momentos dos dois fazia meu coração crescer dentro do peito.
O avô estalou os dedos mais algumas vezes. Parecia emperrar em certas coisas.
— Com quem ele parece? É alto... não consigo lembrar o nome.
— Ele parece o Xiao Zhan  mais novo, vô. — Wangji  estudou meu rosto e piscou. — Mas ele não é tão alto, e Wuxian  é mais bonito.
— É, tem razão. — Ele assentiu e sorriu. — Aquele tem grandes bolas.
Eu tinha ouvido dizer que parecia esse ator algumas vezes ao longo dos anos, mas nunca antes ficara vermelho por causa disso.
Nós três sentamos na parte de trás do barco, onde passamos algum tempo. O avô de Wangji  nos entretinha com histórias de quando começou a construir barcos e todas as experiências de tentativa e erro que fizeram parte desse período. Era impressionante quanta coisa ele conseguia lembrar, mas às vezes esquecia quem eram os membros da família ou onde estava. Em um dado momento, ele se levantou e anunciou que ia ouvir sua gatinha ronronar.
— Ele gosta de ouvir o som do motor — Wangji  explicou. Ele soprou um anel de fumaça do charuto que acendera pouco antes e o segurou com a mão levantada.
— Acho que é mais por causa disso que ele tem vindo aqui. Minha avó não deixa mais meu avô fumar... desde que ele abandonou um charuto aceso e o tapete pegou fogo.
— Melhor assim. Essas coisas fazem mal. E nunca entendi qual é graça. Não dá nem para tragar. Sempre achei que charuto é uma espécie de símbolo fálico que os homens poderosos gostam de exibir.
Wangji  examinou seu charuto e sorriu.
— Ainda bem que este aqui é um Cohiba extragrosso.
— Sério, que graça tem um charuto?
— Tem mais a ver com ele te forçar a viver o momento. Se estivesse aqui sentado sem o charuto, provavelmente eu pegaria o celular e navegaria por alguns minutos ou faria alguma coisa no barco. Mas um bom charuto me faz sentar e parar por um minuto, refletir sobre o meu dia ou sobre a beleza à minha volta. — Seus olhos passearam por meu rosto e ganharam um novo brilho. — E tenho muito o que apreciar no momento.
Em vez de me acanhar com aquele olhar, decidi retomar o controle. Ele segurava o charuto com a mão mais afastada de mim, então me debrucei para pegá-lo entre seus dedos.
— Como é que se faz isso? — Levei o bastão canceroso e fumegante aos lábios.
Wangji  arqueou uma sobrancelha.
— Vai fumar meu charuto?
— Isso te incomoda?
Um sorriso malicioso levantou um canto de sua boca.
— É claro que não. Pode cair de boca no meu Cohiba.
Revirei os olhos, mas senti um arrepio, apesar de não ter nenhuma brisa.
— Encaixe entre os lábios.
— Ok.
— Finge que está bebendo alguma coisa de canudinho. Mas não trague. Só segura a fumaça na boca e solta. Não puxe o ar com força.
Fiz como ele dizia – ou pensei que fiz, pelo menos. Mas, depois de puxar a fumaça, engoli um pouco sem querer e comecei a tossir.
Wangji  riu.
— Eu falei para você não tragar.
Falei meio engasgado:
— Pelo jeito é mais fácil falar do que fazer.
Devolvi o charuto.
Ficamos sentados em silêncio por alguns minutos. Wangji  estava atento ao avô, que continuava debruçado sobre o motor do outro lado do barco, como se o consertasse. Olhei para os outros barcos na marina.
— O pôr do sol deve ser lindo aqui.
— É.
— E romântico, provavelmente. Você traz seus encontros aqui para criar um clima?
Wangji  levou o charuto à boca. A imagem era um pouco excitante, especialmente quando pensei que meus lábios tinham estado no mesmo lugar antes. Ele puxou a fumaça quatro ou cinco vezes, depois a soltou em uma nuvem espessa e branca.
— Se está falando de pessoas com quem eu saio, a resposta é não. Não os trago aqui para criar clima nenhum.
— Por que não?
Ele deu de ombros.
— Porque não.
Um barulho alto chamou nossa atenção. Wangji  deu um pulo, mas era só a porta do motor que o avô dele tinha fechado.
Ele limpou as mãos batendo uma na outra.
— Ainda é tão sexy quanto no dia em que ronronou pela primeira vez. Mas o carburador pode precisar de alguns ajustes. Vai ter mais eficiência no consumo de combustível.
— Vou cuidar disso. Obrigado, vô.
— Podemos ir? Preciso do meu sono da beleza.
— Quando quiser. — Wangji  se levantou e tentou ajudar o avô a descer a rampa para o deque, mas sua oferta foi recusada. O avô afastou a mão de Wangji  e saiu do barco sozinho.
Wangji  e eu sorrimos um para o outro, e eu aceitei a ajuda dele para desembarcar. Nós três voltamos juntos ao carro.
O trajeto de volta à casa dos avós de Wangji  foi rápido, e o avô dele desceu do automóvel assim que paramos. Wangji  desceu atrás dele.
Quando chegou à porta da frente da casa, o avô olhou para trás e gritou:
— Tchau,Xiao Zhan!
Coloquei a cabeça para fora do carro.
— A gente se vê, Bolas!
Ele disse alguma coisa ao Wangji , mas não consegui ouvi-lo.
— Rapaz, ele é de parar o trânsito, não é?
Wangji  sorriu.
— Sem dúvida, vô. Sem dúvida.
Os dois homens entraram e alguns minutos depois uma mulher que imaginei ser a avó de Wangji  abriu a porta novamente. Ela abraçou Wangji e ele esperou a porta estar fechada e trancada, o que verificou duas vezes, antes de voltar ao carro.
Wangji  entrou e bateu a porta.
— Desculpe.
— Ah, não. Não se desculpe. Seu avô é demais. Foi muito divertido e seu barco é lindo.
— Obrigado.
— Costuma usá-lo sempre?
Wangji  hesitou antes de responder.
— Todos os dias. Eu moro nele.
— Sério? Isso é muito legal. — Levantei uma sobrancelha. — Mas você disse que não leva seus encontros com quem sai ao barco.
— Não levo. Também tenho um apartamento no centro, em Marina Del Rey. Tem gente que usa a casa como residência e o barco para o lazer. Eu faço o contrário.
Hum... interessante.
Conversamos no curto trajeto até minha casa. Era uma conversa casual, mas eu não conseguia relaxar completamente perto de Wangji . Ele ocupava muito espaço – tanto no assento, ao meu lado, quanto na minha cabeça. O motorista reduziu a velocidade quando entramos na minha rua.
Apontei para o pequeno prédio residencial, inesperadamente feliz por morar em um bairro bom.
— É ali.
A limusine estacionou junto à calçada, e o clima casual e relaxado acabou abruptamente. Eu me sentia como se estivesse ao final de um encontro e a despedida fosse tensa, não como se só precisasse dar boa-noite ao CEO da empresa para a qual trabalhava.
Toquei a maçaneta da porta e falei bem depressa:
— Obrigado pela carona.
Wangji  se inclinou para o motorista.
— Preciso de uns minutos, Bem. Vou acompanhar a sr. Wei até a porta.
— Não é necessário — eu disse.
Wangji  pôs a mão sobre a minha, ainda na maçaneta, e abriu a porta do carro. Ele desceu primeiro e estendeu a mão.
— É necessário.
Tocando a parte inferior das minhas costas, Wangji  me conduziu pela calçada estreita. Eu sentia o calor da palma de sua mão escaldando minha pele e tentava entender se era meu corpo ou o dele que estava pegando fogo. Talvez fosse a conexão entre nós.
Meu apartamento ficava no terceiro andar, e ele insistiu em subir comigo pelo elevador. Na porta do apartamento, ele pôs as mãos nos bolsos da calça.
— Mais uma vez, obrigado pela carona — falei.
— Disponha.
— Bem... tenha uma boa noite. — Acenei depressa, meio desajeitado, e abri a porta. Lá dentro, olhei para trás e sorri constrangido pela última vez antes de fechar a porta. Depois encostei a cabeça nela e bati algumas vezes.
Caramba, como você fica idiota perto desse homem.
Suspirando, fui até a cozinha, mas a campainha me fez voltar em seguida. Wangji  devia ter esquecido alguma coisa. Voltei e olhei pelo olho mágico antes de abrir a porta.
Sorri, debochado.
— Já está com saudade?
Wangji  balançou a cabeça e continuou sério. Não parecia muito satisfeito por continuar ali parado. Depois de um suspiro ruidoso, ele disse:
— Vamos sair sexta à noite.
— Hã... você parece estar me pedindo uma coisa horrível.
Ele passou a mão na cabeça.
— Desculpe. Sei que provavelmente não é a melhor das ideias, mas queria muito sair com você.
Mordi o lábio.
— Não é a melhor das ideias porque trabalho para você ou não é a melhor das ideias porque a gente se conheceu porque mandei um e-mail para você quando estava bêbado?
Wangji  sorriu.
— As duas coisas.
Eu gostava da honestidade dele. E da linha do queixo. E daquela covinha do lado esquerdo do rosto, que eu só notava agora. Na verdade, não conseguia raciocinar direito quando olhava para esse rosto bonito.
Por isso abaixei a cabeça, para organizar os pensamentos, mas isso só serviu para me fazer lembrar outras coisas de que gostava nele: os ombros largos, a cintura estreita... Droga, os pés grandes também.
Contudo, mesmo com toda essa embalagem linda, eu ainda não estava convencido. Mas meu raciocínio era diferente do dele. Eu estava receoso porque algo me dizia que esse homem poderia me devorar vivo.
Depois de debater mentalmente os prós e os contras, olhei para ele.
— E se a gente for beber alguma coisa? Vamos ver o que acontece.
— Se você prefere assim...
Suspirei.
— Acho que sim.
— Vamos beber alguma coisa então. Pego você às sete.
— Pode ser no Leilani ? Vendo o pôr do sol, talvez?
O músculo na mandíbula de Wangji  se contraiu.
— Meu apartamento tem vista para o porto e para o oeste. Dá para ver um pôr do sol lindo da varanda. E tem um bar ótimo no píer. Pode ser uma opção.
— Prefiro o barco ao seu ponto pornô.
Wangji  ameaçou sorrir.
— Ponto pornô?
— Você disse que mora no barco e se diverte no apartamento.
Seus olhos passearam por meu rosto.
— Se eu disser que sim, vai ser um encontro?
Queria muito aceitar. Eu sentia uma tremenda atração física por ele, mas também me sentia atraído por sua atitude direta, firme. E, para completar, ele baixou a guarda na presença do avô e mostrou que era muito mais que aquela aparência carrancuda. Mas... alguma coisa nele me apavorava.
Olhei nos olhos dele.
— Você só quer dormir comigo ou quer realmente sair comigo?
Wangji  sorriu.
— Sim.
Dei risada e balancei a cabeça.
— Agradeço a honestidade. Mas posso pensar?
O sorriso vaidoso desapareceu.
— É claro.
— Obrigado. Boa noite, Wangji .
Fechei a porta me sentindo desanimado, mas no fundo sabia que tinha feito a coisa certa. Nada em Lan Wangji  era simples.
Especialmente por ele ser meu chefe.

(....)

𝑻𝑶𝑻𝑨𝑳𝑴𝑬𝑵𝑻𝑬 𝑰𝑵𝑨𝑫𝑬𝑸𝑼𝑨𝑫𝑶Onde histórias criam vida. Descubra agora