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                       DEZESSETE

Wangji

Adquiri o hábito de gravar o jornal da manhã para assistir na minha mesa.
Havia uma pilha de trabalho esperando por mim, uma tonelada de e-mails para responder, mas ali estava eu, sentado no sábado de manhã vendo o jornal do dia anterior pela segunda vez. Wuxian ficava bem de azul-turquesa destacava seus olhos cinzentos. Talvez eu devesse sugerir que os âncoras se levantassem em algum ponto do programa para mudar um pouco as coisas.
Meu Deus. Era isso mesmo que eu estava fazendo? Analisando as opções de guarda-roupa de um homem para decidir que traje combina mais com seus olhos? E pensando em ligar para o diretor de programação e exigir que o âncora ficasse em pé para eu poder ver melhor o corpo dele? Meu cérebro precisava de um check-up.
Soltei um jato de ar quente e me forcei a fechar o vídeo gravado. Tinha trabalho para fazer. Montanhas de trabalho. Antes de Wei  Wuxian , eu não sabia nem o nome da emissora que tínhamos, muito menos o que alguém vestia. Dizer que o moreno me distraía era atenuar a realidade.
Peguei uma pasta e comecei a analisar uma possibilidade de investimento que estava em cima da minha mesa desde a semana anterior. Mas, na segunda página, meu celular vibrou e, embora costumasse ignorar o telefone quando estava trabalhando, eu o tirei do bolso.
*Wuxian: Obrigada pelas flores. Também gostei muito de ontem. Especialmente da última parte, perto do meu carro.*
Ele incluiu uma carinha piscando no fim da mensagem. Normalmente, pessoas que usavam emojis nas mensagens me irritavam muito. Mas me peguei sorrindo da carinha amarela. Respondi:
*Wangji: Jantar hoje à noite?*
*Wuxian: Não posso. Tenho planos.*
Como eu tinha planos para o domingo, escrevi sugerindo o próximo fim de semana, mas ele também estaria ocupado. Uma hora depois, a troca de mensagens ainda me incomodava.
Ele tem planos.
Um encontro? Eu tinha encontrado com ele uma vez para beber, então jantar com outra pessoa não era nenhum absurdo. Mas pensar nele saindo com outra pessoa me deixava maluco.
Forcei-me a voltar ao trabalho e tentei não pensar nele com algum outro cara. Mas reli a mesma página três vezes e ainda não sabia o que as palavras diziam. Por isso joguei a pasta de lado e peguei o celular outra vez.
*Wangji: Seus planos para hoje são um encontro com alguém?*
Os pontinhos começaram a pular, pararam, começaram de novo. A sequência se repetiu algumas vezes.
*Wuxian: Isso te incomodaria?*
Responder a uma pergunta com outra pergunta era o que eu mais detestava depois de emojis. Esse moreno estava mexendo comigo. Eu não era de fazer joguinho. Não tinha tempo para isso. O que me fez lembrar... que eu precisava voltar ao trabalho.
Joguei o telefone de lado e retomei a proposta de investimento que estava tentando digerir.
Porém, vinte minutos depois, lá estava eu de novo com a porcaria do celular na mão. Completamente distraído com uma única mensagem. Não sabia se estava mais zangado comigo por precisar saber sobre os planos dele ou com ele por não ter me respondido.
*Wangji: Só responde à minha pergunta.*
A resposta dele foi imediata.
*Wuxian: Caramba, alguém está azedo.*
Respirei fundo, o que não me ajudou a relaxar.
*Wangji: Isso é porque eu continuo esperando uma resposta...*
*Wuxian: O músculo da sua mandíbula está contraído?*
Li a mensagem dele e olhei para o teto. Esse homem ia acabar comigo. E eu começava a ficar com dor de cabeça por causa da força com que apertava os dentes. Então ele não estava errado sobre o músculo da minha mandíbula.
*Wangji: Wuxian... responde a porra da pergunta.*
Meu telefone começou a tocar em vez de sinalizar a chegada de uma mensagem. O nome de Wuxian apareceu na tela. Deslizei o dedo pelo aparelho para atender.
— Por que você tem que ser tão difícil? — falei.
Wuxian riu, e o som relaxou imediatamente o músculo da minha mandíbula.
— É divertido te provocar.
Encostei na cadeira.
— Sou muito mais divertido quando provoco. O que acha de a gente passar logo para a próxima fase desse relacionamento em vez de você ficar me enlouquecendo?
Senti que ele ainda sorria quando disse:
— Tenho um encontro hoje à noite, mas você não tem com que se preocupar porque ele é casado.
— Como é que é?
Ele riu.
— Hoje eu tenho o jantar de ensaio do casamento da minha melhor amiga, Langjiao. Ela se casa no fim de semana que vem. Meu parceiro na cerimônia é o irmão dela, que é casado com um homem incrível. Então, tecnicamente, meu encontro hoje à noite é com ele.
Maravilha. Agora estou com ciúmes de um homem gay casado...
— E domingo? — ele perguntou.
Decidi devolver a cortesia e ver como ela reagia.
— Não posso. Tenho um encontro.
É claro que esse encontro era com a minha avó. Eu seria o Papai Noel na festa anual da Cloud Recess...
Ele ficou quieto por um longo instante, depois respondeu com tom seco:
— Bom, se tem um encontro, não precisa ter outro comigo.
Sorri.
— Viu como é bom, Wuxian? Não é muito agradável, é? Especialmente enquanto estou tentando trabalhar. Meu encontro amanhã é com minha avó.
— Ah.
— Próximo fim de semana então? — Eu realmente não queria esperar todo esse tempo.
Wuxian suspirou.
— No próximo fim de semana tem o casamento. Langjiao e eu vamos passar a noite de sexta no nosso apartamento, a última noite juntos, no sábado ela se casa, e no domingo tem um brunch para os padrinhos. Normalmente não saio durante a semana porque acordo muito cedo para trabalhar. Mas talvez a gente possa jantar cedo ou fazer alguma coisa esta semana.
— Eu viajo na segunda-feira para a Costa Leste a trabalho. Só volto na quinta à noite.
— Ah. — Ao menos ele parecia tão desapontado quanto eu.
— Bem, talvez no outro fim de semana. Ou talvez... Seria muito estranho se eu te convidasse para ir comigo ao jantar de ensaio hoje? Os padrinhos vão levar um acompanhante.
Eu tinha pensado em nosso encontro como uma ocasião tranquila, só nós dois, não uma noite com todos os amigos dele em um ensaio de casamento. Mas esperar duas semanas para vê-lo estava fora de cogitação. Então teria que aceitar o que estava à mão.
— Que horas eu te pego?
— Sério? Você vai comigo?
— Aparentemente é o único jeito de te ver, então sim. Mas que fique bem claro... só vou porque não consigo mais esperar para te empurrar contra o carro de novo e beijar sua boca.
Ele riu.
— É justo. Seis e meia? O ensaio é às sete e o jantar é logo depois. Eles vão se casar no restaurante, não vai ser nada demorado.
— Chego às seis e quinze. Porque não vou ficar esperando até depois do jantar para te beijar.
Naquela noite, meu coração começou a bater em velocidade alarmante no minuto em que ele abriu a porta. Wuxian estava com cabelo pra trás. Uma camisa social preta com as mangas enroladas até o cotovelo e os dois botões abertos o que era muito sexy, mas alguma coisa naquela pele me fez salivar.
Brinquei com ele pelo telefone sobre ir mais cedo porque pretendia chegar para uma segunda rodada de beijos, mas não planejava agarrá-lo no minuto em que ele abriu a porta.
É o que dizem: a vida acontece enquanto estamos ocupados fazendo planos...
Wuxian sorriu, me cumprimentou e se afastou para eu entrar, o que não fiz. Empurrei-o contra a porta aberta do apartamento, segurei seu rosto e colei os lábios aos dele. Wuxian não esperava, mas não demorou muito para corresponder. Segurou meu cabelo e puxou, e eu chupei sua língua. Inclinei o corpo e segurei a parte de trás de uma coxa, levantando sua perna para poder chegar mais perto. Quando dei por mim, as pernas dele estavam em volta da minha cintura, e eu esfregava uma ereção crescente entre suas pernas. Se gostasse um pouco menos dele, teria me ajoelhado e enfiado o rosto entre suas pernas para sentir seu gosto ali mesmo. Mas Wuxian merecia mais respeito. Por isso, relutante, encerrei o beijo.
Ele piscou algumas vezes e sorri ao perceber que ele havia se perdido no momento, como eu.
— Caramba. Foi tão bom quanto da primeira vez.
Usei o polegar para limpar um pouco de baba abaixo de seu lábio inferior.
— Não consegui me concentrar em nada que não fosse essa boca desde que você saiu do estacionamento ontem à noite.
Ele sorriu.
— Adoro sua sinceridade.
Beijei sua boca de novo e falei com os lábios roçando os dele.
— Se gosta da minha sinceridade, tem muitas coisas sobre as quais eu gostaria de falar... coisas que gostaria de fazer com você.
Ele riu e me empurrou, brincando.
— Por que não entra e me deixa fechar a porta? Já fui demitido por exposição indecente uma vez. Não quero que isso aconteça de novo.
— Pode acreditar em mim. Se quiser andar por aí nu agora mesmo, com certeza não vai ser demitido.
O apartamento estava cheio de caixas. Ele apontou um lugar vazio no sofá e disse:
— Sente-se onde conseguir achar um espaço. Só preciso pegar minha carteira .
— Não tenha pressa.
Quando Wuxian desapareceu no corredor, dei uma olhada ao meu redor. Havia algumas fotos emolduradas na estante de livros, duas dele e outra mulher – que deduzi ser a amiga que morava com ele –, uma de Wuxian aos sete ou oito anos com alguém que presumi ser a mãe dele, e outra dele tirada recentemente com uma senhora.
Wuxian parou atrás de mim quando eu segurava esse porta-retratos.
— Minha tia Opal — disse. — Irmã da minha mãe. Ela me criou depois que minha mãe morreu. É como uma mãe para mim. Há três meses, ela se mudou para a Flórida. É estranho não ter mais minha tia por perto.
— Vocês ainda são próximos?
Ele assentiu.
— Ela tem degeneração macular, está perdendo a visão lentamente. Foi morar com a filha em Sanibel Island. Carly é doze anos mais velha que eu. Já não morava mais com a mãe quando eu cheguei lá aos dez anos. Mas somos próximas. Trocamos mensagens com frequência. Vou visitá-las no mês que vem.
— Eu tinha cinco anos quando fui morar com minha mãe.
— Vai se incomodar se eu perguntar o que aconteceu para ter ido parar no sistema de acolhimento?
Não era um assunto sobre o qual eu falava com frequência, mas Wuxian tinha sido muito aberto sobre a história de sua família.
— Minha mãe tinha quinze anos quando eu nasci. O nome do meu pai não está na minha certidão de nascimento e ele nunca apareceu. Ela enfrentava sérias dificuldades em casa, e nós estávamos sempre mudando de um lugar para outro. Ela acabou se envolvendo com drogas, e nessa época nós vivíamos em abrigos. Uma noite ela saiu escondida e nunca mais voltou. Nunca mais a vi.
Wuxian levou a mão ao peito.
— Meu Deus. Sinto muito.
Devolvi a fotografia ao lugar dela.
— Não precisa. Eu tive sorte. A primeira família para onde me mandaram foi a dos meus pais. Nunca tive que ficar mudando de casa, como muitas crianças. Tive uma infância boa. Carmen foi a melhor mãe do mundo. Meu pai trabalhava muito, mas também era ótimo. Eles são meus pais.
Wuxian sorriu com tristeza.
— É. Acho que me sinto assim também. Embora tenha lembranças boas da minha mãe, é como se minha tia Opal sempre tivesse ocupado esse lugar. Vem comigo. Quero te mostrar uma coisa.
Eu o segui até o quarto, e ele me mostrou uma placa sobre a cama.
“Sem chuva. Sem flores.”
— Muita coisa em torno da morte da minha mãe e de tudo que aconteceu naquela época está bem apagado em minha memória. Mas me lembro do padre se aproximando para falar comigo depois do funeral e dizendo essas palavras enquanto eu chorava. Por alguma razão, elas me acompanharam ao longo dos anos. Agora parecem apropriadas para a sua história também.
Olhei nos olhos dele. Cacete. Esse homem era único. Eu estava a três metros da cama dele, e tudo que queria era abraçá-lo. O fato de não querer jogar Wuxian em cima da cama e transar com ele me assustava um pouco.
Confuso, desviei o olhar.
— É uma mensagem bonita.
Wuxian pegou um suéter no guarda-roupa e a carteira em cima da cômoda.
— Pronto para conhecer meus amigos?
— Seria melhor ter você só para mim, mas estou pronto para sair, se é isso que está perguntando.
Ele sorriu e segurou minhas mãos.
— Quer saber um segredo?
— Qual?
— Tenho um pouco de medo de ficar sozinho com você. Por isso insisti nos drinques antes de um encontro de verdade.
— Por quê?
— Não sei. Acho que não confio em mim quando estou com você. Fico... nervoso. Não de um jeito ruim, se é que isso faz sentido.
Levei uma das mãos dele aos lábios e beijei seus dedos.
— Faz muito sentido. Sabe por quê?
— Por quê?
— Porque você também me deixa apavorado.

(....)

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