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                         TRINTA E TRÊS



Wangji
Eu estava cozinhando quando ele acordou.
Wuxian  tinha dormido de cabelo molhado, e ele havia secado sem volume de um lado, o lado sobre o qual ele dormiu e rebelde do outro. Uma confusão. Mas, para mim, ele nunca esteve mais lindo. Era um alívio imenso saber que ela estava bem.
Abaixei a chama do fogão e limpei as mãos em um pano de prato.
— Dormiu bastante.
Ele se aproximou para ver o que era preparado no fogão.
— O que está fazendo? Que cheiro bom.
Levantei a tampa da panela.
— Frango piccata.
— Parece delicioso. Eu nem sabia que tinha os ingredientes para isso.
Dei risada.
— Não tinha. Saí enquanto você roncava e fui comprar frango, azeite e alguns temperos. Os únicos que encontrei no armário foram canela e pimenta.
— Ah, Langjiao era a cozinheira da casa. Os temperos eram dela. Ela quis deixá-los aqui, mas pus tudo em uma caixa quando ela não estava prestando atenção. Teria sido um desperdício deixar tudo aquilo aqui.
Eu o abracei.
— Como se sente?
— Ainda estou cansado. Mas melhor. Por quanto tempo eu dormi?
Olhei para o relógio.
— Umas seis horas. São quase quatro e meia.
— Ah. Uau.
— Está com fome?
— Sim. Na verdade, estou.
Sorri.
— Que bom. Vou terminar e a gente pode jantar cedo.
Wuxian  foi lavar o rosto e voltou olhando em volta.
— Viu meu celular? Deve ter quebrado no acidente. Tentei usar quando estava no pronto-socorro, mas não consegui ligar. Minha esperança é que ele ressuscite quando eu carregar a bateria.
Apontei com o garfo para uma sacola em cima da bancada.
— Tirei o celular da sua bolsa enquanto você dormia e comprei um novo para você. Está ali, na caixa. Eles disseram que transferiram todos os dados do aparelho antigo, mas é melhor dar uma olhada, porque a atendente da Best Buy parecia ter uns quinze anos e a transferência de dados não demorou mais que cinco minutos.
— Não precisava ter se preocupado com isso.
— Não, mas eu quis.
Wuxian  ficou quieto durante o jantar. Ainda parecia estranho, mas nunca sofri um acidente grave e deduzi que devia ser normal ficar um pouco abalado. Depois que comemos, ele ligou para Langjiao para contar o que havia acontecido, e ouvi o surto do outro lado do telefone.
Mais tarde, Wuxian  continuou quieto.
— Tem certeza de que está se sentindo bem? — perguntei.
Ele desviou o olhar e confirmou com um movimento de cabeça.
— Quer ver um filme?
— Da Disney? — perguntei, rindo. — Com certeza.
Ele forçou um sorriso.
— Hoje não. — Sentado no sofá, começou a examinar o conteúdo da Netflix, depois da Hulu e finalmente da HBO on Demand. Com um suspiro, ele me ofereceu o controle.
— Escolhe você.
Depois de pornô, o tipo de filme de que eu mais gostava eram os de ação. Mas acidentes de carro e coisas explodindo não eram a melhor coisa para ver agora.
— Gosta do Will Smith?
— Gosto.
— Na dúvida, Will Smith. — Apontei o controle para a TV e voltei à Netflix. Procurei pelo nome do ator e disse: — Escolhe um.
Ele deu de ombros.
— Qualquer um.
Eu não queria bancar o chato, mas ele estava estranho de verdade. Quase deprimido. À procura da felicidade era o primeiro filme da lista, e eu escolhi esse, apesar de já ter visto. Pus os pés de Wuxian  no meu colo e sugeri que ele deitasse para receber uma massagem.
O filme era sobre um pai com sérios problemas financeiros que perde a casa e vai morar em abrigos e nas ruas com o filho enquanto se dedica a um trabalho sem remuneração para ter o que fazer e tentar melhorar o futuro dos dois. Era um drama baseado em uma história real, e algumas partes do filme eram tristes. Mas, em um dado momento, olhei para Wuxian  e vi as lágrimas correndo por seu rosto. Ele não emitia nenhum som. Peguei o controle e dei pausa no filme.
— Ei. — Eu a levantei e aninhei em meus braços. — Que foi? Você está bem?
Ele balançou a cabeça para dizer que sim, mas manteve os olhos baixos.
Esperei um pouco, mas ele não fazia contato visual nem falava nada, então toquei seu queixo com dois dedos e ergui seu rosto para que olhasse para mim. O que vi fez meu peito doer. Os olhos dele estavam cheios de sofrimento, e sua expressão sugeria uma extrema inquietação.
— Fala comigo. O que está acontecendo? Sente alguma dor? Está lembrando cenas do acidente?
Ele começou a chorar ainda mais.
— Eu... não quero te perder.
Afastei o cabelo de seu rosto e o segurei entre as mãos.
— Não vai me perder. De onde tirou essa ideia?
Ele cobriu minhas mãos com as dela.
— Wangji ... eu...
— O quê?
Ele balançou a cabeça e fechou os olhos.
— Wangji , eu nasci com uma condição genética muito rara, eu estou... grávido.

Em um minuto estou no apartamento dele, vendo Wuxian  dormir e pensando que devia declarar meu amor quando ele acordar, no outro, estou indo embora como o covarde de merda que sou.
Não gritei, não discuti. Talvez fosse o choque... não sei. Mas também não consegui oferecer consolo ou dizer que ia ficar tudo bem. Porque não ia. Não estava tudo bem.
Esperei Wuxian  se acalmar, depois disse que precisava ir embora. Ele quis saber para onde eu ia, mas eu não fazia ideia. A verdade era que precisava ir para qualquer lugar que não fosse ali.

             ***

Chamei o bartender levantando o copo vazio e sacudindo o gelo que não teve tempo para derreter.
— Outro? Já?
Peguei a carteira e tirei dela três notas de cem dólares.
— Cem para pagar o que eu beber, as outras duas para você não deixar meu copo vazio.
O bartender, que eu tinha começado a chamar de Joe, embora não soubesse se ele havia se apresentado ou se eu havia inventado o nome, encheu meu copo.
— Combinado.
Sentado ao balcão, bebi mais três vodcas com tônica. Nunca fui de beber muito, e na quarta comecei a ver tudo dobrado – e era exatamente nesse estado que eu queria ficar. O bar barato a alguns quarteirões do apartamento de Wuxian  começou a esvaziar. Restava apenas um velho sentado na outra ponta do balcão. O bartender se aproximou e pegou meu copo, que tinha mais ou menos um quarto da dose. Jogou o gelo fora e fez mais um drinque. Quando pôs o copo cheio na minha frente, ele apoiou um cotovelo no balcão.
— Por essa gorjeta, também ofereço meu ouvido para escutar a história que te trouxe até aqui.
Peguei o copo cheio, e parte da bebida respingou no balcão.
— Talvez eu seja só um alcoólatra.
Joe riu.
— Não. Sua tolerância é uma merda.
— Talvez esteja falido e sem sorte.
— Falido? Com a carteira cheia e essas roupas?
— O que acha que sou, então?
Joe deu de ombros.
— Quer que eu fale a verdade?
— É claro.
Ele olhou por cima do balcão para me analisar.
— Calça limpa, sapatos bons, camisa polo com esse logo de grife e uma carteira recheada. Você parece um babaca rico que deve ter crescido em berço de ouro.
Gargalhei, mas não era uma risada de humor. Berço de ouro. Foi exatamente o que Wuxian  disse naquele primeiro e-mail que começou tudo.
Bebi mais um pouco.
— Talvez vocês dois estejam certos.
O garçom me olhou intrigado. Mas não se importava o suficiente para perguntar do que eu estava falando.
— Portanto, não faliu, não é alcoólatra, e isso deixa apenas a opção óbvia, o motivo que faz metade dos frequentadores aqui encher a cara. Problema em casa. Acertei?
Resmunguei.
— É mais ou menos isso.
— O problema com esse problema é que ele começa disfarçado de diversão.
Nunca ouvi ninguém colocar a situação dessa maneira, mas havia muita verdade na afirmação.
— Você é um sábio, Joe.
O bartender sorriu.
— Meu nome é Ben. Mas, por duzentos paus, pode me chamar até de Shirley. Não dou a mínima. Já me divorciei duas vezes e meu conselho provavelmente não deve valer merda nenhuma. Mas vou dar assim mesmo. Se ela te faz sorrir de manhã, antes do primeiro café, e você não tem que beber para entrar no clima quando ela está por perto, fica com ela. Compra umas flores na loja de conveniência na esquina, vai para casa e pede desculpas. Não interessa quem está certo ou errado.
Se fosse tão simples...
— Você está certo, Joe.
O bartender endireitou o corpo.
— Então vai para casa?
— Não. Seu conselho não vale merda nenhuma. E não é ela, é ele.

(.....)


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