𝑇𝑅𝐼𝑁𝑇𝐴 𝐸 𝐶𝐼𝑁𝐶𝑂

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         TRINTA E CINCO





Wuxian



Quase duas semanas se passaram, mas eu sentia como se fosse um ano.
Entre a obra da casa e meu trabalho, eu tinha o suficiente para me manter ocupado. Mas, cada vez que passava pela saída de acesso para a marina onde Wangji  morava, era como se arrancasse um esparadrapo de uma ferida aberta.
Era tarde de sábado, e Langjiao e eu nos encontraríamos para almoçar no nosso restaurante grego favorito. Fiquei preso no trânsito, por isso cheguei alguns minutos atrasado, e ela já estava sentada.
— Oi. — Sentei-me do outro lado da mesa, na frente dela.
Langjiao me olhou com uma expressão intrigada.
— Veio da academia?
— Não. Por quê?
— Não quero ser indelicada, mas você está péssimo.
Suspirei.
— Não tive vontade de arrumar o cabelo. O estilo bagunçado saiu de moda?
— Não, mas isso aí na sua cabeça parece um ninho de rato. E tem uma mancha na sua blusa, e você está com olheiras.
Olhei para minha blusa de moletom. Estava mesmo manchada. Tentei limpar, mas foi inútil.
— Ontem jantei um pote de Bem & Jerry’s. Errei a boca algumas vezes.
Langjiao levantou as sobrancelhas.
— Você dormiu com essa blusa?
— Cala a boca. Já te vi usar a mesma roupa durante dias quando estava doente.
— Porque eu estava doente. Você está?
— Não.
Outra vez o ar de reprovação.
— Pelo jeito, Wangji  ainda não deu notícias.
Meus ombros caíram.
— Não.
Langjiao balançou a cabeça.
— Não acredito que ele se tornou um merda desses.
— Ele não é um merda. Ele só... não queria mesmo ter filhos.
— Sei. E, há cinco anos, eu não queria me casar de jeito nenhum. Também não queria que minha mãe tivesse morrido com cinquenta e nove anos no ano passado. É a vida. Fazemos o melhor que podemos, mas nem sempre temos o controle de tudo.
— Eu sei. Mas ter filhos é algo que a gente pode controlar.
— Você sabia que era Mpreg?
— Não.
— Wangji  usou camisinha em todas as vezes que vocês transaram?
— Usou.
— Então é óbvio que isso também não é sempre controlável. Nada na vida é infalível.
— Eu sei. Mas ele tem um bom motivo para estar aborrecido. — Alguns dias depois de Wangji  ter ido embora, desabafei com Langjiao, contei que estava grávido e falei sobre o que pensava ser o motivo para ele não querer filhos.
— É claro que tem. Ele passou por um trauma terrível. Eu entendo. Wangji  precisava de um tempo para ficar chocado e aborrecido, mas já se passaram quase duas semanas. O que ele vai fazer? Fingir que não vai ter um filho? Que essa coisa toda não existe?
Ultimamente eu me perguntava a mesma coisa. Nos primeiros dias sem notícias dele, entendi por que Wangji  estava aborrecido. Mas em que momento ele pretendia lidar com a realidade de nossa situação? Eu tinha certeza de que ele apareceria... mesmo que não quisesse mais ficar comigo ou participar da vida do bebê. Acreditava que ao menos ele admitiria tudo isso, e que conversaríamos. Mas, nos últimos dias, comecei a perder o que me restava de confiança nele. Por isso jantava sorvete.
— Será que a gente pode... não falar sobre isso hoje? Preciso de um dia de folga, sem ter que lidar com essa coisa toda. Vamos comer muito e ir ao cinema, como planejamos, e vamos comer pipoca com manteiga e cobertura doce até enjoar.
Langjiao concordou.
— É claro. Sim. Mas posso dizer mais uma coisa? Não é sobre o Wangji .
Sorri. Era a cara dela.
— É claro.
Seu rosto se iluminou com um sorriso.
— Parei de tomar pílula.
Arregalei os olhos.
— Sério? Pensei que você e o Ming quisessem esperar um ou dois anos antes de terem filhos.
— Queríamos. Mas as coisas mudam. Tenho pensado nisso desde o dia em que você disse que estava grávido. Alguns dias atrás, Mingjue entrou no banheiro quando eu estava escovando os dentes. Você conhece minha rotina matinal. Escovo os dentes e tomo a pílula. Ele olhou para a cartela na minha mão e disse: “Mal posso esperar até você engravidar. Não ia acreditar em como me excita pensar em você com um barrigão”. Eu olhei para ele e disse: “Posso parar já”. Acho que esperava que ele recuasse. Uma coisa é dizer que está ansioso para ver a mulher grávida, outra é querer que ela engravide no mês seguinte. Mas ele pegou a cartela de pílulas da minha mão e jogou no lixo. E a gente deu uma rapidinha em cima da pia.
Dei risada.
— Seria incrível se a gente tivesse filhos da mesma idade. Mas está preparada para isso?
Ela pegou uma azeitona do prato no centro da mesa e pôs na boca.
— Acho que ninguém está pronto para ter filhos. Mas sim... não quero esperar.
Segurei as mãos de Langjiao.
— Te amo, sua doida.
— Sei que quer parar de falar sobre isso. Então prometo que é a última coisa que vou dizer hoje... — Ela afagou minha mão.
— Vou estar do seu lado sempre, a cada passo desse caminho. Vou segurar seu cabelo se tiver enjoo matinal, vou engordar com você mesmo que não esteja grávida, e vou estar do seu lado na sala de parto se quiser. Você não vai ter que enfrentar nada sozinho.
Senti meu olhos lacrimejarem e abanei o rosto com a mão.
— Obrigado. Agora vamos mudar de assunto. Não quero mais chorar.
— Você manda. — Ela pegou o cardápio e apontou para o garçom que vinha em nossa direção.
— Será que ele está carregando uma banana?
Virei para ver o que o garçom tinha nas mãos, mas ele se aproximou da mesa e eu continuei sem saber do que Langjiao estava falando. O homem segurava só um bloquinho e uma caneta. Fiz meu pedido e esperei ela fazer o dela. Quando peguei meu cardápio para devolver, fiquei cara a cara com o zíper de sua calça e entendi que ela não estava falando das mãos do garçom.
Arregalei os olhos e tive que abrir novamente o cardápio na frente do rosto para esconder o sorriso. Sério, ou o homem tinha uma tremenda ereção, ou usava enchimento na calça. Dei risada e tive que fingir que tossia para disfarçar enquanto devolvia o cardápio.
— Tudo bem? — ele perguntou.
Peguei o copo de água de cima da mesa e o levei à boca.
— Sim. Só engoli errado.
Depois que ele se afastou, nós dois rimos por uns cinco minutos. Era a primeira vez em quase duas semanas que eu dava risada de verdade, e isso me fez sentir que talvez eu pudesse passar por aquilo sozinho se fosse necessário.


O revestimento do banheiro ficou lindo. Eu tinha acabado de varrer tudo depois que o empreiteiro foi embora e estava ali admirando o resultado. A pedra lavada que o homem na Home Depot havia sugerido dava um ar rústico que combinava muito bem com o clima de casa do lago que eu queria dar ao cômodo.
Infelizmente, pensar no empreiteiro me fez lembrar de Wangji . Ele tinha ficado com ciúme do homem na loja. Como alguém podia passar de ciumento a desaparecido em poucas semanas? E não vou nem começar a falar em tudo que aconteceu nesse banheiro no dia em que ele esteve aqui me ajudando.
Tudo me fazia lembrar de Wangji  – meu apartamento, o trabalho, até a obra da minha casa. Inconscientemente, cobri a barriga com a mão. Ao perceber o que estava fazendo, suspirei. Ele estava em todos os lugares, até dentro de mim. Como eu ia escapar disso?
Minha cabeça latejava de tanto pensar, e meu coração doía no peito. Decidi que, se não tivesse notícias de Wangji  até a manhã seguinte, quando faria duas semanas completas desde o dia em que ele sumira, iria procurá-lo no escritório. Mesmo se não fôssemos mais um casal, eu precisava saber se ele planejava fazer parte da vida do filho.
Olhei para o banheiro pela última vez e apaguei a luz. Esvaziei a pazinha na lata de lixo da cozinha e deixei a vassoura encostada à porta. Os últimos raios de sol do dia entravam pelas janelas da sala de estar ao lado, e pensei em fazer uma caminhada até o lago para o pôr do sol – outra coisa que me fazia lembrar de Wangji , mas eu me recusava a permitir que ele tirasse de mim a beleza de um pôr do sol.
Meu terreno ficava a cerca de três quarteirões do lago, mas era uma caminhada em linha reta por uma rua asfaltada. Um dos terrenos próximos, de frente para o lago, ainda não tinha sido vendido, e eu me sentei na grama dessa propriedade, na beira do lago, e vi o céu se tingir de tons de laranja.
Fechei os olhos, respirei fundo algumas vezes e abracei os joelhos. Ouvi um ruído atrás de mim, mas estava tão imerso em meus pensamentos que não registrei o barulho de um sininho até quase ser atropelado por um cachorro. Um filhote de golden retriever começou a lamber meu rosto. Isso me fez sorrir e dar risada.
— Que lindinho. De onde você veio?
Alguns segundos depois, ouvi a resposta.
— Sentado, garoto!
Fiquei paralisado ao reconhecer a voz de Wangji  atrás de mim.
Não tive coragem para me virar até sentir a vibração dos passos ao meu lado no chão.
— Wangji ?
Ver o rosto dele fez meu coração bater acelerado. Levantei a mão para cobri-lo e senti a pulsação.
— Desculpa. Não queria te assustar — ele disse.
— O que está fazendo aqui?
— Vim falar com você. Vi seu carro na casa, mas precisava de um minuto para clarear as ideias. — Ele apontou para trás por cima do ombro. — Por isso estacionei aqui. Não queria te atrapalhar. Quando abri a porta do carro, ele pulou por cima de mim e correu para cá como um bandidinho.
— Ele? O cachorro veio com você?
— Sim. É meu.
O cachorro viu alguns pássaros a alguns metros de onde estávamos e correu atrás deles.
— Acho melhor pôr a coleira nele.
Wangji  o seguiu e conseguiu encaixar a coleira na guia quando o cachorro pulou em cima dele. Fiquei assistindo a tudo, muito confuso. Ele tem um filhote de cachorro? Quando isso aconteceu?Wangji  voltou com o filhote na coleira e pela primeira vez prestei atenção a sua aparência. Minha reação deve ter sido parecida com a que Langjiao teve ao me ver há alguns dias. Wangji  estava péssimo. Ou tão péssimo quanto podia ficar, o que, no momento, me deixou furioso de, porque o terrível dele era muito melhor que o melhor da maioria dos homens. Wangji  tinha olheiras, o cabelo estava despenteado, as roupas estavam amarrotadas, e a pele tinha um tom abatido.
Meu primeiro impulso foi perguntar se ele estava bem, mas então lembrei quanto eu não estive bem nas últimas duas semanas e quanto ele se importou com isso. Virei de costas para ele e olhei para o lago.
— O que você quer? — perguntei.
Ele ficou em silêncio, mas senti que continuava atrás de mim.
— Posso... me sentar?
Peguei uma folha de grama na minha frente e joguei longe.
— Você que sabe.
Wangji  sentou-se ao meu lado. O cachorro dele começou a cavar um buraco a alguns metros de nós, e nós dois ficamos olhando. Eu me recusava a encará-lo, embora sentisse a atração que sempre sentia quando estava perto dele.
— Como está se sentindo? — ele perguntou em voz baixa.
Comprimi os lábios.
— Sozinho. Assustado. Decepcionado. Abandonado.
Senti os olhos dele em meu rosto, mas não virei a cabeça.
— Wuxian  — ele murmurou.
— Olha para mim. Por favor.
Virei-me com o olhar mais gelado de que era capaz, mas foi só ver aquele rosto que amoleci. Caramba, como eu sou idiota.
— Desculpa. — A dor na voz dele era palpável. — Sinto muito, eu não devia ter fugido.
Meus olhos ficaram cheios de lágrimas. Mas eu ainda me recusava a chorar por ele. Pisquei e abaixei a cabeça, e fiquei assim até conseguir mandá-las de volta.
— Não tem desculpa para o que eu fiz. Mas queria falar com você sobre a Leilani, se concordar. Não é uma justificativa para o modo como te tratei, mas pode te ajudar a entender por que fiz o que fiz.
Agora ele tinha minha atenção. Olhei para ele com um sorriso triste e assenti.
Wangji  precisou de alguns minutos para organizar os pensamentos, depois começou a falar em voz baixa.
— Leilani May nasceu no dia quatro de agosto. Tinha três quilos, setecentos e cinquenta gramas. — Ele sorriu. — Grandes olhos azuis, um azul tão escuro que era quase roxo. Meu avô a apelidou de Índigo por causa disso. O cabelo escuro era tão farto que parecia uma peruca.
Wangji  fez uma pausa e de repente esqueci toda minha raiva. Segurei a mão dele e afaguei.
— Ela devia ser linda.
Wangji  pigarreou e assentiu.
— Só chorava quando precisava de uma fralda limpa. E adorava ficar bem embrulhadinha, tão apertada que não conseguia mexer os braços. — Outra pausa. — E ela amava quando eu cheirava os pezinhos dela e dizia que ela estava fedida. Dizem que os bebês não sorriem de verdade até terem alguns meses de idade, que antes disso o sorriso é só um reflexo. Mas Leilani sorria para mim.
Wangji  ficou quieto de novo. Dessa vez foi ele quem desviou o olhar. Olhou para o lago e para o sol poente. Vi seu rosto passando de terno a sombrio e soube que precisava me preparar para a próxima parte da história.
Sua voz era quase um sussurro quando a ouvi novamente.
— Já contei que Lily foi morar na casa da minha família, que ela fazia parte do sistema de acolhimento. Passou anos indo e voltando, entre a casa da mãe dela e a nossa. A mãe dela era mentalmente doente, e o estado interferia e a tirava de casa pelo menos uma vez por ano, quando a mãe parava de tomar os remédios. Lily sempre foi diferente. Mas não reconheci o que era aquilo até ela ficar mais velha. E então era tarde demais. Eu estava muito envolvido com ela.
Senti uma pontada de ciúme, embora fosse ridículo.
Wangji  abaixou a cabeça.
— Os médicos dizem que ela é bipolar como a mãe. E isso, associado à depressão pós-parto, a fez... — Ele balançou a cabeça e sua voz tremeu. — Ela...
Ai, meu Deus. Não!
Wangji  dissera que tinha sido um acidente, mas não... não pode ser isso. Por favor, Deus, não. Que ele não tenha tido que suportar algo tão inconcebível. Saí de onde estava, me ajoelhei entre os joelhos dele e segurei seu rosto entre as mãos. Apesar de Wangji  manter os olhos fechados, lágrimas corriam por seu rosto.
Ele engoliu e sua expressão de dor me rasgou por dentro. Era como se alguém tivesse cravado uma faca em meu peito.
Wangji  balançou a cabeça.
— Nós discutimos. Eu peguei no sono. Devia ter imaginado. Quando acordei, Lily estava no convés chorando, e Leilani tinha desaparecido. Ela jogou... — Ele começou a soluçar.
Eu o abracei.
— Shhh. Tudo bem. Está tudo bem. Não precisa dizer mais nada. Sinto muito, Wangji . Sinto de verdade.
Ficamos assim por um bom tempo, chorando e abraçados como se a vida dependesse disso. Naquele momento, pensei que talvez a dele dependesse. Talvez ele precisasse desabafar, pôr tudo isso para fora para seguir em frente.
Depois de um tempo, ele recuou e olhou dentro dos meus olhos.
— Desculpa, eu não devia ter me afastado. Você não merecia. E nunca mais vou fazer isso. Prometo.
Eu estava arrasado. Tinha medo de acreditar que ele estava dizendo mais do que disse, medo de alimentar esperanças e pensar que esse pedido de desculpas era uma promessa de futuro, não só uma explicação do passado.
Ele me encarou.
— Desculpa, Wuxian . Eu me senti sepultado nesses últimos sete anos, enterrado na escuridão, no chão... até te conhecer. Você me fez sentir que talvez eu não tivesse sido sepultado, mas plantado no solo, só esperando para voltar a crescer.
Respirei fundo para não chorar de novo.
— Por favor, não se desculpe mais. Eu entendo. Lamento que isso tenha acontecido com a gente e trazido de volta lembranças difíceis.
Wangji  balançou a cabeça.
— Não. Não fale isso. Não lamente essa gravidez. Eu não lamento.
— Não?
Ele repetiu o movimento negativo com a cabeça.
— Estou apavorado. Não me sinto digno de ter outro filho. Tenho medo de que aconteça alguma coisa outra vez. Mas não lamento que esteja esperando um filho meu.
A esperança desabrochou dentro de mim.
— Tem certeza?
Wangji  puxou meu rosto até tocar meu nariz com o dele.
— Eu te amo, Wuxian . Acho que amo desde a primeira vez, quando me mostrou atitude naquele café. E tentei lutar contra esse sentimento o tempo todo, mas é fisicamente impossível não te amar. Pode acreditar, eu tentei, me esforcei muito. Chega, cansei de lutar. Eu quero amar você.
As lágrimas voltaram, mas dessa vez eram de felicidade.
— Também te amo.
O cachorro de Wangji  cansou de cavar o buraco e veio lamber meu rosto de novo. Ainda choramingando, dei risada.
— Seu cachorro é tão persistente quanto você — falei.
— Ele não é meu.
— Quê? Mas você tem a coleira e disse que era, não disse?
— Spuds é seu, se você o quiser.
Spuds. Meu Deus. Ele se lembrava das coisas que eu tinha dito que queria. “ Dois ou três filhos com idades próximas, talvez um golden retriever chamado Spuds... uma casa cheia. ”
Ficamos sentados na grama, trocando beijos e repetindo eu te amo muitas, muitas vezes. O sol se foi e as estrelas chegaram. Eu quase não conseguia mais enxergar o lago.
Wangji  afagou meu cabelo.
— Fui visitar Leilani todos os dias da semana passada. Em alguns dias, fiquei sentado, encostado na lápide, do anoitecer ao amanhecer. Não foi bonito. Com certeza assustei as pessoas que foram visitar túmulos próximos. Mas não ia lá desde o funeral. Simplesmente não conseguia ir. Em vez disso, ficava naquele maldito barco e todo dia me lembrava do pior dia da minha vida. Era impossível superar e seguir em frente morando no lugar onde tudo aconteceu. Eu estava mantendo viva a lembrança da minha filha, mas não as lembranças boas em que devia ter me concentrado.
Wangji  fez uma pausa e respirou fundo.
— Em uma manhã, fui parar no hospital psiquiátrico judiciário onde Lily cumpre pena e conversei com o médico que cuida dela. Estive perdido por muito tempo e achei que precisava de alguma coisa deles para seguir com a minha vida. Mas descobri que não. Preciso de alguma coisa de você.
Olhei nos olhos dele.
— O que você quiser. O que posso fazer?
Ele sorriu, um meio sorriso de lado e adorável que dizia que era essa a reação que ele esperava.
— Me dá outra chance.


Um raio de sol que entrava pela janela iluminou meu rosto e me acordou no chão. Nu e confuso, protegi os olhos enquanto levava a outra mão ao cobertor na altura da minha cintura. Lembranças da noite anterior voltaram como uma enxurrada, e um sorriso bobo distendeu meus lábios. Wangji  e eu passamos metade da noite conversando e metade da noite recuperando as duas últimas semanas sem contato físico.
Enquanto eu vivesse, jamais esqueceria sua expressão quando ele disse que me amava enquanto me penetrava. As palavras “fazer amor” antes eram só isso, palavras, até a noite passada. Mas a conexão entre nós foi tamanha que realmente senti que nos tornávamos um só. O que me fez pensar... por que minha outra metade não estava ali deitada ao meu lado?
Enrolei o cobertor no corpo e fui procurar Wangji .
Eu o encontrei na varanda da frente com Spuds.
Ele se virou ao ouvir a porta abrir.
— Bom dia.
Sorri.
— Bom dia. Que horas são?
— Umas dez.
— Uau. Você deve estar acordado há horas.
— Não. Dormi até as nove. — Ele pegou um copo térmico que estava a seu lado, um copo igual ao que ele segurava na outra mão.
— Fui buscar café para nós naquela loja aqui perto. O seu é descafeinado. Talvez tenha esfriado um pouco.
— Ah, obrigada. Eu bebo frio mesmo. Não me importo. — Sentei-me ao lado dele no degrau da escada da minha varanda, e ele beijou minha testa enquanto eu tirava a tampa do copo de isopor. — Isso significa que perdeu o nascer do sol? — perguntei.
— Perdi. Estava dormindo. — Ele sorriu.
— Vai ter que ver o pôr do sol então.
Wangji  balançou a cabeça.
— Gostei de te ver enrolado nesse cobertor, mas bebe o café e vai se vestir. Quero te mostrar uma coisa.
Bebi alguns goles e fui procurar minhas roupas. Estavam espalhadas desde a cozinha até a sala de estar, e sorri quando entrei no banheiro para trocar de roupa. Spuds me seguiu e ficou esperando na porta, do lado de fora.
— Aonde vamos?
— Só caminhar um pouco.
— Entendi. Mas é melhor a gente não ir muito longe, ou vai ter que me carregar. Não me sobrou energia nenhuma depois de ontem à noite.
Wangji  sorriu.
— É assim que eu pretendo manter você: satisfeito e sorridente.
Andamos de mãos dadas até o terreno na beira do lago, onde ficamos sentados ontem à noite. Quando chegamos perto da água, Wangji  olhou em volta.
— Belo lugar para uma casa.
— Concordo. Eu olhei esse terreno antes de comprar o meu. Mas é muito caro.
— Eu sei. Acabei de comprar.
— Você... o quê?
— Telefonei há uma hora e fiz uma oferta. Eles ligaram de volta cinco minutos antes de você acordar para dizer que aceitavam a proposta.
— Não entendi...
Wangji segurou minhas mãos.
— Você queria este terreno. Eu quero te dar, se você permitir. Quero construir uma casa aqui. Com um quintal grande, uma cerca e muitos quartos que vamos ocupar nos próximos anos.
— Está falando sério?
— Estou. — O sorriso de Wangji desapareceu.

— Moro naquele barco há sete anos. Todos os dias, sentia meu coração dilacerado quando pisava no convés e lembrava... Preciso me mudar. Leilani sempre vai ser parte da minha vida, mas tem espaço no meu coração para mais de uma pessoa.

— Ai, Wangji, meu Deus. — Passei os braços em torno do pescoço dele. — Mas e a minha casa?

— Vende. Ou aluga. Ou fica com ela, e podemos usar como esconderijo um dia, quando as crianças estiverem ameaçando nossa sanidade. Já que você pode gestar vamos ter nossos filhos e  você é meio escandaloso e não quero que isso mude.

Dei risada.

— Manter uma casa vazia só para não termos que transar em silêncio? Você é maluco.

— Vamos pensar nisso depois. Vamos ter muito tempo. Vai demorar um pouco para construir alguma coisa.

— Ah, não. Acabei de vislumbrar sua casa pronta antes da minha.

Wangji se inclinou e beijou meus lábios.
— Isso é impossível.
— Por quê?
— Porque não existe a minha casa. Só existe a nossa casa.
Sorri.
— Te amo.
— Também te amo. — Ele se abaixou e beijou minha barriga. — E amo você também.

Depois que nos beijamos, comecei a voltar à realidade.
— Tenho muito trabalho para fazer hoje à tarde. Quer ir passar o dia no meu apartamento enquanto eu trabalho? Podemos pedir comida.

— Não pode levar seu trabalho para o meu apartamento?

— Acho que sim. Só preciso do laptop e de algumas pastas. Quer ver o pôr do sol de lá ou alguma outra coisa?

Wangji me encarou.
— Não. Só pensei em fazer uma bela refeição para o meu garoto milagre e nosso bebê. Depois, em vez de ver o pôr do sol, o plano é ver sua cara enquanto lambo seu corpo todo.

Eu gostava da ideia. Mas...
— Você perdeu o nascer do sol hoje. E disse que via um dos dois todos os dias para lembrar que as coisas boas da vida podem ser simples.

Wangji segurou meu rosto.
— Isso ficou no passado. Agora sei que nem todas as coisas boas da vida são simples. Algumas das melhores são complicadas, mas lindas, e compensam todo o risco. Não preciso mais ver um nascer ou um pôr do sol todo dia para lembrar que coisas boas existem.
— Eu tenho você.

(....)

𝑻𝑶𝑻𝑨𝑳𝑴𝑬𝑵𝑻𝑬 𝑰𝑵𝑨𝑫𝑬𝑸𝑼𝑨𝑫𝑶Onde histórias criam vida. Descubra agora