𝑇𝑅𝐼𝑁𝑇𝐴 𝐸 𝑆𝐸𝑇𝐸

260 63 3
                                    

                      TRINTA E SETE

Wangji
Sentei-me sozinho no convés da popa do Leilani. O silêncio na baía essa tarde era quase sinistro, o que combinava perfeitamente com a ocasião. Eu sentia a mesma calma estranha que reinava na água, embora esperasse sentir justamente o contrário. Dizer adeus ao barco era muito mais que deixar um lugar onde eu havia vivido durante anos. Mesmo que ele não fosse a lugar nenhum... não enquanto meu avô quisesse ir visitá-lo. Mas era hora de seguir em frente. Hora de parar de começar e encerrar meus dias com a lembrança que me assombraria para sempre, e hora de começar a criar novas lembranças, essas cheias de felicidade. Eu só precisava fazer mais uma coisa.
Respirei fundo e peguei a caneta e o papel que tinha deixado separados quando arrumei minhas coisas. Tinha um envelope selado ao meu lado no banco, um dos milhares que recebera e jogara fora ao longo dos anos. Mas hoje, quando a carta diária chegou, eu a guardei no bolso em vez de jogá-la no lixo. Não tinha intenção de ler, mas hoje precisava do endereço para responder.
Foram mais de três mil desses envelopes desde que conheci Lily aos catorze anos. Eu tinha o poder de fazer isso parar a qualquer momento, mas nunca fiz, e agora nem sabia o porquê. Talvez quisesse a lembrança diária como parte do meu castigo. Talvez quisesse impor a Lily a mesma lembrança diária do que ela tinha feito. Talvez tivesse uma cabeça tão ferrada que tinha medo de não pensar em minha filha sem essa carta diária. Não sei. Mas, qualquer que fosse o motivo, hoje era o dia em que isso teria um fim.
Olhei em volta mais uma vez, imaginando Lily parada no convés naquela noite. Eu tinha visto essa imagem em minha cabeça mil vezes antes. Fechando os olhos com força, engoli o gosto do sal no fundo da garganta antes de finalmente aproximar a caneta do papel.

“Lily,
Não sei como te perdoar.
Talvez a esta altura eu devesse ter encontrado Deus ou algo do tipo – encontrado um jeito de aceitar o que você fez e ficar em paz com a ideia de que não foi sua culpa. Mas não aconteceu. Esta carta não é sobre isso.
Preciso dizer quanto eu lamento.
Lamento ter dormido naquela noite.
Lamento não ter visto quanto era profundo o que você estava passando e não ter levado Leilani para longe.
Lamento ter posto suas necessidades acima das necessidades da nossa menininha.
Lamento não ter previsto.
Lamento não ter protegido nossa garotinha.
Fiquei transtornado. Eu fiquei transtornado, Lily.
Passei os últimos sete anos evitando qualquer pessoa que eu pudesse amar. Porque achava que, ao se apaixonar por alguém, você fica cego para os defeitos daquela pessoa e só enxerga o que quer ver. Tive medo de não ver de novo quem alguém realmente é. Achei que podia controlar quem eu amava.
Até Wei Wuxian.
Wuxian me fez perceber que ninguém escolhe por quem se apaixona. Amamos por acaso. Mas continuar apaixonado e fazer dar certo não é algo que acontece por acaso, é uma escolha. E eu escolhi amar esse homem maravilhoso.
Por isso estou escrevendo hoje para contar que me apaixonei por outra pessoa e pedir para você parar de escrever. Quem sabe isso te ajude a seguir em frente também.
Queria poder dizer que encontrei um jeito de te perdoar, mas ainda não consegui. Talvez um dia aconteça. Não é algo que eu possa forçar. Tenho um longo caminho a percorrer e muito o que curar, mas decidi que me perdoar pode ser o melhor começo. Então, embora ainda não seja capaz de abrir o coração e dizer que te perdoo, estou pedindo para você me perdoar. Preciso seguir em frente. Quero parar de me odiar e me esforçar para ter paz. Isso começa com a gente.
Por favor, me perdoe. Um dia espero retribuir o presente do perdão.
Não mande mais cartas.
Adeus, Lily.”
Wangji
(....)

𝑻𝑶𝑻𝑨𝑳𝑴𝑬𝑵𝑻𝑬 𝑰𝑵𝑨𝑫𝑬𝑸𝑼𝑨𝑫𝑶Onde histórias criam vida. Descubra agora