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                DEZESSEIS

Wangji
Oito anos atrás
A porta do box se abriu e deixou passar o vapor do chuveiro. Sorri ao ver Lily nua, pronta para me fazer companhia.
— Oi. Está melhor?
Lily entrou no box e fechou a porta. Pôs as duas mãos em meu peito.
— Sim. Deve ter sido uma gripe ou algo assim.
Gripe. Era assim que ela sempre chamava. Lily parecia ter gripes cada vez mais frequentes desde o último ano. Mas os dias que ela passava encolhida na cama nunca eram acompanhados por tosse ou febre. Lily ficava deprimida. É claro que ela tinha todo o direito a isso. Ela abandonou a faculdade porque odiava as aulas que não tinham a ver com artes, a mãe desapareceu há um ano levando Leo, o filho de três anos, e nós dois fomos duramente atingidos pela morte de minha mãe alguns meses atrás.
Mas os constantes e paralisantes episódios depressivos de Lily pareciam mais que depressão comum. Ela se isolava por dias a cada surto de “gripe”. Não comia, não falava, não funcionava. E, embora passasse quase vinte e quatro horas na cama, raramente dormia. Só ficava olhando para o nada, perdida na própria cabeça.
Isso me assustava. Eu não falava, mas ultimamente seus altos e baixos me lembravam cada vez mais a mãe dela, tanto que eu insistia para que ela procurasse um terapeuta. Essa conversa sempre transformava sua depressão em raiva. Porque, para ela, precisar de ajuda significava que ela era como a mãe.
Lily se inclinou e colou o corpo ao meu. Fechou os olhos e levantou o rosto para o jato de água. Um sorriso largo se espalhou por seu rosto, e eu não teria conseguido impedir o meu nem se tentasse. Lily era assim: dona de um sorriso contagiante. Quando não estava com gripe, ela era cheia de vida e felicidade, mais que as outras pessoas. Os períodos felizes sempre me faziam esquecer os tristes... até eles acontecerem de novo alguns meses depois.
Ela se ergueu na ponta dos pés e colou os lábios aos meus. A água caía sobre nossas bocas. Fazia cócegas e nós dois começamos a rir.
— Estive pensando em uma coisa — ela disse.
Afastei o cabelo molhado de seu rosto e sorri.
— Espero que esteja pensando em se abaixar e apoiar as mãos nessa parede atrás de você.
Ela riu.
— Estou falando sério.
Segurei a mão dela e a deslizei entre nós até minha ereção.
— Eu também. Dá para perceber?
Ela riu mais.
— Estava pensando em quanto eu te amo.
— Hum, gostei de como isso começou. Continua.
— E quanto adoro morar aqui com você.
Meu avô me dera o barco alguns meses antes, no meu aniversário de vinte e um anos – o primeiro barco que ele construiu na vida. Quando minha mãe morreu, Lily e eu decidimos mudar para a marina e morar no barco. Não era exatamente um lar tradicional, mas minha garota também não era exatamente tradicional, e isso a deixou feliz. Além do mais, passávamos todos os fins de semana velejando e explorando novos lugares. Como eu tinha começado a trabalhar na empresa da família depois que me formei, alguns meses atrás, tínhamos dinheiro para morar onde quiséssemos. Mas o barco era perfeito para nós. E Lily era feliz nele, na maior parte do tempo.
— Também adoro morar aqui com você.
— Então, o que eu estava pensando... — Lily abaixou a cabeça e ficou quieta.
Toquei seu queixo e levantei seu rosto até ela olhar nos meus olhos.
— Em que está pensando, Lily? Conta para mim.
— Eu pensei que... Bem... — Ela se ajoelhou.
Não era a sequência que eu esperava para essa conversa, mas funcionava muito bem para mim.
Mas, em seguida, ela levantou a cabeça, segurou minha mão e mudou de posição, mantendo apenas um dos joelhos no chão. Meu coração disparou.
— Eu te amo, Wangji. — Lily sorriu. — Quer... se casar comigo?
Eu a levantei do chão.
— Vem cá. Era eu quem devia estar ajoelhado, não você. E tenho pensado muito em nós ultimamente. Adoraria me casar com você.
Ela sorriu.
— Mas... — eu disse.
O sorriso desapareceu.
Eu estava pensando muito em ter essa conversa, mas queria tê-la planejado um pouco melhor... para que ela não acontecesse ali, embaixo do chuveiro. Mas essa era a vida com Lily, imprevisível e sempre uma aventura. Eu tinha aprendido a seguir a correnteza por causa dela.
Segurei seu rosto.
— Quero me casar com você, mais que tudo. Mas você tem tido... gripes... muito frequentes nos últimos tempos. E eu quero muito que você procure alguém, consulte um médico.
A expressão de Lily partiu meu coração. Qualquer conversa sobre procurar ajuda a dilacerava. De repente, ela se virou, abriu a porta do box e saiu correndo do banheiro.
— Lily! Espera! — Desliguei o chuveiro e saí do box. Quando dei o segundo passo, pisei em uma poça de água deixada por ela e escorreguei. Caí sentado. — Puta que pariu. Lily, espera!
Mas era tarde demais. Enquanto eu me levantava do chão, Lily continuava correndo. Já tinha subido a escada e saído da cabine antes que eu conseguisse pegar uma toalha e ir atrás dela. Cheguei ao deque da popa, ainda me enrolando na toalha, e a vi pular do barco completamente nua.
— Lily!
Ela me ignorou e continuou correndo pelo píer. Quando a alcancei, eu a abracei por trás.
— Para. Para de correr. A gente precisa conversar.
Nesse momento, um casal de idosos saiu da cabine de um barco. Eles arregalaram os olhos. Levantei uma das mãos e disse:
— Desculpa. Estamos saindo daqui. Estávamos só... fazendo um joguinho e as coisas saíram do controle. Tudo certo.
Percebendo que impressão poderia dar aquela cena, eu abraçando uma mulher nua que tentava fugir, disse a Lily:
— Não é, meu bem? Diga ao simpático casal que está tudo bem.
Lily tinha fugido abalada e furiosa, mas sua disposição mudou no meio da calamidade em que nos encontrávamos. Ela começou a rir.
— Pega-pega pelados — gritou para o casal chocado. — E acho que agora está comigo.
Começamos a gargalhar. Tirei a toalha da cintura e a estendi na frente do corpo de Lily. Continuei colado às costas dela para não me expor completamente quando nos viramos para voltar ao barco. Acenei e continuamos andando com passos sincronizados.
— Peço desculpas por isso. Tenham um bom dia.
De volta ao barco, passamos uns cinco minutos dentro da cabine rindo sem parar. Essa era minha Lily. Minha menina maluca, linda e aventureira que me deixava em pânico em um minuto e no minuto seguinte me fazia rir até chorar. Caí no sofá e a puxei para o colo, jogando a toalha longe. Segurei seu rosto entre as mãos.
— Eu te amo, minha menina sem freio. Quero me casar com você, mas acho que precisa de ajuda.
Lily ficou séria.
— Não sou louca como minha mãe.
— Eu sei. Mas faça isso por mim.
Lily pensou um pouco, depois assentiu.
— Tudo bem. Vou procurar quem você quiser. Marca uma consulta para mim hoje.
Sorri.
— Não quis dizer que tem que ser urgente. Mas vou procurar alguém. Ok?
— E aí podemos nos casar?
Olhei dentro dos olhos dela.
— Prometo. Mas me dá um tempinho para fazer isso direito.

Hoje faz sete anos que a gente se conheceu. Comprei um lindo anel para ela, fiz reservas em um restaurante elegante e convenci o dono da galeria favorita de Lily a abrir o lugar só para nós esta noite, para eu fazer o pedido. Seria tudo perfeito. Fazia três semanas desde o pedido de casamento de Lily, e alguns dias atrás ela foi à primeira consulta com um terapeuta. Surpreendentemente, voltou para casa dizendo que tinha gostado muito do médico. Mas, mesmo com tudo perfeito, minhas mãos suavam muito quando o dono da galeria saiu para nos deixar sozinhos.
— Não acredito que você fez tudo isso.
— Tudo pela minha garota.
Andamos por ali de mãos dadas, apreciando cada tela sem pressa como Lily adorava fazer. No dia em que estive na galeria para conversar com o proprietário, percorri todo o espaço e olhei todas as obras. Uma em especial chamou minha atenção e confirmou que eu havia escolhido o lugar certo para fazer o pedido. Havia ali uma obra chamada Promessas. Era uma pintura abstrata de uma mulher no altar. Só se via a parte de trás do vestido de noiva, mas o foco da obra eram todas as pétalas de flores sobre um tapete ao longo do corredor da igreja. Todo o resto era preto e branco, mas as pétalas eram coloridas e vibrantes. No minuto em que vi a tela naquele dia, pensei em Lily. Para mim, ela era como aquelas pétalas. E soube que aquele era o lugar perfeito para o pedido de casamento.
Respirei fundo quando passamos na frente da tela. O rosto de Lily se iluminou quando ela a viu. E, como sempre, eu sorri ao vê-la sorrir. Enquanto ela admirava a pintura, eu me ajoelhei no chão com um joelho só.
Ela gritou e cobriu a boca ao perceber.
— Sim!
Eu ri.
— Eu ainda não perguntei nada, meu bem.
Ela também se apoiou sobre um joelho.
— Wangji.
— Que foi?
— Também tenho uma surpresa para você.
— Que surpresa?
— Estou grávida.

(....)

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