Síndrome do Protagonista

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Dentro da Psicologia existe um modelo chamado de "Cinco Grandes Fatores da Personalidade", uma teoria amplamente aceita pelos acadêmicos que descreve a personalidade humana sob a ótica de cinco dimensões, sendo elas: Abertura para Experiências, Agradabilidade, Conscienciosidade, Neuroticismo e Extroversão.

A Abertura para Experiências refere-se à apreciação pela arte, emoção, aventura e ideias incomuns. Pessoas com alta pontuação nessa dimensão tendem a ser criativas, intelectualmente curiosas e abertas a novas ideias. A Conscienciosidade está voltada para o responsável e diligente das suas metas. Eles são eficientes e com forte senso de autodisciplina. A Extroversão é o fator dos enérgicos assertivos, que buscam a companhia de outras pessoas. São entusiasmados por natureza, e gostam de interações sociais. A Agradabilidade é o traço maior dos que possuem tendências a serem compassivos, cooperativos e harmoniosos em relação ao outro. Tendem a ser altruístas e preocupados com o bem-estar do próximo. Já o Neuroticismo experimenta emoções negativas, como ansiedade e tristeza. E são propensos a serem emocionalmente vulneráveis ao estresse.

Os cinco fatores da personalidade podem ser medidos por meio de questionários e inventários. Eles são considerados pouco mutáveis ao longo da vida, dessa forma devem ser utilizados para descrever e prever mudanças de comportamento humano. No entanto, a pandemia da COVID-19 e a inserção do coronavírus na sociedade modificaram as pessoas, tanto do ponto de vista direto, já mencionado no capítulo anterior por meio da infecção dos astrócitos, quanto através da influência física, exemplificada pela Teoria dos Cinco Fatores. Essa mudança comportamental não é desconhecida do público. Vimos tal temática em Resident Evil, onde o T-vírus, desenvolvido pela Umbrella Corporation com o intuito principal de ser uma arma biológica, cria uma ferramenta de guerra, transformando os infectados em seres altamente raivosos.

Ellis Norman, a protagonista do primeiro livro de romance policial que escrevi, vivenciou os dois lados dessa mesma moeda. Ela enfrenta dificuldades ao longo da trama, incluindo combates corporais e psicológicos intensos com um assassino em série, um louco desmedido que coloca a vida dos moradores da cidade de Portsmouth em perigo. A instabilidade mental gerada pela perda de sua irmã, além das minuciosas investigações, exige de Ellis tomadas de decisões arriscadas demais até mesmo para uma agente do FBI. Dessa forma, podemos analisar seu processo de decisão e o gerenciamento do estresse, com o seu desempenho pessoal.

— O que motiva o comportamento heróico da personagem? — Perguntou Giulia. — Quais são os fatores que impulsionam Ellis a arriscar a própria vida para salvar os outros?

— É o sentido da sua existência — eu disse. — Esse desejo de ser um herói também está dentro de nós.

— O que a torna especial?

— Diferente de pessoas comuns, Ellis tem todos os requisitos para assumir o papel de heroína.

Como antiga integrante das Forças Armadas e comandante de Segurança contra o terrorismo, Ellis fazia parte do exército norte-americano que lutou na Guerra do Afeganistão, onde obteve notas altas em desarmamento de bombas e espionagem. Foi recrutada pelo FBI com suas habilidades de combate desenvolvidas. Em julho de 2012, tornou-se um dos poucos membros sobreviventes da chacina de Washington e, anos depois, a responsável por descobrir o paradeiro de Quinn Solo.

Analisando o comportamento de Ellis através do Modelo dos Cinco Fatores, ela mostra flexibilidade e criatividade na solução de problemas, enfrentando situações desconhecidas e perigosas. Costuma trabalhar em equipes, assumindo uma posição de liderança. Suas dinâmicas de grupo, comunicação, e habilidades de gestão fornecem análises importantes para estudos da psicologia. Demonstra organização e responsabilidade, seguindo protocolos e objetivos claros nas missões. Interage bem com seus colegas, mas também pode funcionar de forma eficiente em situações individuais. Sua preocupação com os civis reflete um alto grau de empatia. Apesar de enfrentar situações estressantes, mantém a estabilidade emocional na maior parte do tempo, sugerindo uma baixa pontuação em neuroticismo.

A mentalidade do herói, esse comportamento altruísta ao extremo, é personificado por personagens em segunda dimensão, como Ellis Norman, mas não se limita ao mundo das séries, filmes ou jogos. O papel do salvador que busca constantemente agradar aos outros, assumindo responsabilidades em excesso e colocando as necessidades da equipe em primeiro lugar, assemelham-se aos desejos humanos mais profundos. É um sintoma comum dentro da sociedade, pois o "herói", geralmente, é aquele que triunfa, é admirado e subirá ao pódio. A síndrome do protagonista pode ser alimentada pelos traumas. Um adulto excluído de grupos sociais, por exemplo, tende a buscar o que lhe faltou na infância.

Se imaginarmos que o universo é uma grande biblioteca, e a vida de cada pessoa são os livros nas estantes, automaticamente, daremos o título para o livro das nossas vidas e escreveremos suas páginas. Nesse aspecto, inconscientemente desejamos ser o protagonista de nossa história, mas não temos a obrigação de ser o personagem principal na vida de outras pessoas, porque esse desejo incessante mina a autonomia e a capacidade de terceiros de lidar com os desafios.

É importante questionar as motivações por trás desse padrão de grandeza excessiva e reconhecer que cada indivíduo é responsável por sua própria jornada, instrução, orientação e liderança. Quando exercidos de forma equilibrada, podemos contribuir positivamente para o desenvolvimento da sociedade.

Não quer dizer que o protagonista seja dispensável. Ao contrário, em um mundo cheio de interpéries, a figura do herói deve salvar aqueles que carecem de coragem e assumem-se como coadjuvantes. Por isso o mito do herói é aclamado, pois os seus feitos extraordinários dão a forma ao enredo da vida.

Joseph L. Henderson (2008), relata no Livro “O Homem e seus Símbolos”, obra que teve a concepção e a organização de Jung, que os heróis, por fazerem parte da trama central, caminham em muitas direções. Lutz Muller (2017) diz que o caminho do herói é o processo da criação, tratando-se da mudança, que através da morte nos conduz à existência. Esse movimento da psique é o que podemos chamar de “Páscoa Individual”, e explica o porquê a vida do herói e da heroína nos fascina tanto: eles carregam a capacidade de personificar o desejo e a figura perfeita do ser humano que temos guardado desde o nascimento.

Através de nossa identificação com o arquétipo do herói, somos encorajados a descobrir nossos valores. Encontramos nele nossos medos e sofrimentos, nossa luta diária, nossos fracassos e sucessos.
O herói que habita em nós desperta o atrevimento de viver sem fugir dos problemas. É através dele que criamos a capacidade de superar muitos desafios.

Quando falamos em herói, falamos de um personagem mítico. Por vezes, o defensor do cosmos, protegendo o mundo contra as forças do caos, fazendo com que o mundo continue em equilíbrio. Em outros momentos ele é o próprio agente de transformação, derrubando regimes corruptos e decadentes.

Na Grécia Antiga, transitar entre o mundo das divindades e dos reles mortais fazia com que o herói fosse visto como uma espécie de ponte. Para os gregos, eles eram protegidos pelo destino, tendo a força dos deuses e o sentimentalismo dos mortais. Por isso tinham poder para cumprir suas missões, mas não estavam livres do sofrimento. Édipo foi abandonado no monte Citerão, Hércules venceu duas serpentes, Perseu foi lançado com a mãe ao mar, Harry Potter, graças ao sacrifício de sua mãe, sobreviveu ao ataque de Voldemort.

— Em algum momento de nossas vidas, vamos ser importantes para alguém — afirmei. — Seja nossos amigos, seja nossa família.

— Eu não me considero heroína por ter cuidado da minha avó quando ela ficou doente — disse Giulia.

— Nem por ter levado seu cachorro no veterinário, ou feito aquela doação aos moradores de rua?

— Talvez.

— Afinal, devemos ou não ser heróis?

Giulia respirou fundo, como se estivesse irritada, mas ela estava apenas pensando na melhor resposta para me dar, sem que parecesse arrogante, evitando que minha pergunta ganhasse um ar de ingenuidade. Depois me chamou para subir ao seu quarto, eu lhe acompanhei e a vi abrindo a porta do guarda-roupa mais velho dali.

 

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