Estresse pós-traumático

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— O que você achou? — Perguntou Giulia.

— Ellie é impulsiva — respondi.

— Ela sofre de estresse pós-traumático.

— Todo mundo do jogo não sofre?

— Não acho.

Às vezes, os dilemas e os sofrimentos de certos personagens são os mesmos que sentimos quando olhamos dentro de nós. Demorei até entender que Ellie e Joel não eram menos humanos do que eu. The Last Of Us me mostrou que devemos aceitar os dias cinzas quando eles vierem, porque somos inconstantes, imersos em frustrações, conquistas e derrotas. Podemos ser fortes e vulneráveis, maus ou bons.

Como protagonista da primeira parte do jogo, Joel concordou em ser a ponte da salvação para a humanidade. Em seus pensamentos, um novo propósito talvez superasse a morte trágica de sua filha. Mas ele tentou esquecer Sarah a qualquer preço, sem saber que as lembranças dolorosas faziam parte do processo de superação.

Assim que Joel conheceu Ellie, ele demorou para criar qualquer tipo de afeição por ela. Os seus momentos de grosseria mostraram que, inconscientemente, ele estava tentando esconder para debaixo do tapete as piores recordações. Contudo, a relação paternal entre os dois se tornou inevitável, devido as circunstâncias do mundo caótico, além das perdas análogas que sofreram.

Em exemplos similares aos deles, muitos pensam que não merecem mais viver. Acham que não são dignos o bastante para alcançarem os seus objetivos e abrem mão do bem mais precioso que o universo lhes deu - a vida.

Infelizmente, nem tudo são flores. A empatia desenvolvida entre Ellie e Joel também trouxe tristeza. É porque nós interpretarmos a dor e a tristeza como contrapartes emocionais dos sentimentos de amor e felicidade. Quanto mais amamos alguém, mais nos sentiremos tristes com sua partida. A morte de um colega distante quase não influência em nosso estado de humor. E pouco importa a morte de um assassino em série. Na verdade, a medida que os seus crimes crescem, passamos a odiá-lo. Porém, se valorizamos determinada pessoa, vamos temer que ela nos deixe. Isso explica porque o carinho que Joel desenvolveu por Ellie trouxe emoções desagradáveis. A raiva, nesse caso, veio da mesma fonte do medo que se originou com a morte de Sarah, e essa fonte nasceu do amor de pai que ele nutria por sua filha.

Quem já assistiu Divertida Mente percebe o poder emocional agindo em nossos íntimos. O filme, que se passa na mente de Riley Andersen, descreve por meio de analogias a forma com que nossas emoções se comportam e dependem umas das outras. As cinco emoções — Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojo tentam conduzir a vida de Riley, entretanto ela não estava pronta, nem compreendia desde o início que as dificuldades serviam para que pudesse amadurecer. Mas em equilíbrio, todas as emoções são importantes. E se pudermos organizá-las, podemos nos tornar mais fortes e resilientes.

— Eu me identifico com protagonistas que fogem do padrão habitual — confessou Giulia — da menina que precisa ser salva o tempo todo pelo herói.

— Joel salvou Ellie dos Vaga-lumes — provoquei.

— ... as fraquezas dela continuam lá. É o que a torna mais humana.

— É verdade.

Giulia tinha razão. Ellie não era apenas um ponto dentro do enredo, ou o motivo para que o roteiro seguisse aonde o autor queria. Ainda que imune ao fungo Cordyceps, seu papel não se limitava em ser a escolta de Joel. Ela sabia que precisava sobreviver em um mundo turbulento, e que esse mundo não facilitaria as coisas. Ser órfã, criada em um colégio militar, nos limites da zona de quarentena, lhe deram coragem. Somado com sua inteligência e carisma, personificava um símbolo contundente do que é a representação de humanidade.

Nos eventos do segundo jogo, quando Joel morreu, Ellie viu suas emoções lhe traírem, sentiu raiva da vida, de tudo e de todos, até mesmo de quem a amava. Foi a mesma sensação que senti quando o meu pai partiu. A morte da pessoa que me gerou, o meu herói, me fez perceber que eu precisava reestabelecer a fé, a confiança e a alegria, para quebrar o ciclo de medo e solidão. Em outras palavras, eu tinha que aprender a caminhar sozinho.

Suportar a tristeza que nos assoma após a perda de um ente querido é uma tarefa que precisa de tempo, esforço e cuidado, um processo lento, que não deve ser varrido para debaixo do tapete. É como jogar um jogo muito difícil. Nós vamos encontrar respostas e progredir se tivermos cautela. Às vezes é necessário retroceder pelo mesmo caminho e refazer coisas que já não aguentamos mais.

Quando Ellie passou a viver na comunidade de Jackson, ela estava protegida dos infectados e das milícias. Porém não estava protegida no lugar que deveria ser o mais seguro - a sua própria mente.

Ver Joel sendo torturado e morto foi o gatilho para a aparição do seu transtorno de estresse pós-traumático. Acostumada com a violência, ela tornou-se cada vez mais instável e poderia aniquilar, sem remorso, quem atrapalhasse o seu caminho.

O que eu notei ao assistir The Last of Us e enquanto treinava minha mente para superar minha ansiedade noturna, em especial o receio persistente de não conseguir dormir, foi o quanto a raiva pode superar medo. Ela tem sua origem no tédio, na irritação e no próprio medo. Uma pessoa que se vê insegura na sociedade acumula aborrecimentos e não consegue gerir suas atitudes como deveria, descarregando todas as emoções reprimidas.

Em alguns casos a raiva é útil para evitar injustiças e sermos leais conosco e com os outros. Mas é comum que pessoas em estado extremo de raiva cometam loucuras sem pensar nas consequências, ou entrem em brigas desnecessárias, das quais não podem ganhar - aqui as brigas também se referem ao sentido literal da palavra. Eu já presenciei algumas brigas no colégio, onde adolescentes tímidos assumiam uma coragem sobrenatural quando o ódio pulsava em suas veias. Li matérias sobre vítimas reagindo a assaltos ou pulando de prédios em chamas, e os resultados não costumavam ser nada bons.

Ellie, por exemplo, mostrou-se capaz de fazer coisas terríveis, sacrificando a sua saúde física e mental. A obsessão dela fez com que torturasse uma mulher grávida e se tornasse uma assassina, além de ter matado todos aliados de Abby, a responsável direta pela morte de Joel, para cumprir a sua vingança.

Membro da Frente de Libertação de Washington, Abby também havia assassinado Joel por vingança, já que o seu pai foi morto em uma das tentativas dele em proteger a vida de Ellie. Mas a vingança não trouxe alívio para nenhuma das partes.

No último confronto entre as duas, elas batalham nas margens da praia, ficam cansadas e feridas. Quando Ellie tenta afogar Abby, ela se lembra de Joel. No entanto, não são mais lembranças de dor, culpa, nem de tristeza. São lembranças felizes, dele tocando música, evidenciando que ela finalmente conseguiu perdoar a si mesma.

Nesse sentido, a violência presente na estética do jogo, ainda que seja importante para a construção do universo de The Last Of Us, é escaneada pelo nosso inconsciente. Nós passamos a não temer mais os flashes de horror e aproveitamos melhor o enredo. No fim, Ellie nos mostra que sempre há saídas, mesmo em um ambiente hostil.

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