Modernidade Líquida

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Na véspera de Natal de 2022, Giulia deu de presente para sua sobrinha Luísa, de sete anos, um castelo medieval do Harry Potter feito com mais de seis mil peças de lego. Enquanto eu ajudava a menina a montá-lo no tapete da sala, tive uma reflexão profunda a respeito da vida.

Em dezembro, faria um mês que o meu pai tinha falecido. Ele ficou quase trinta dias internado em estado grave e os médicos não deram muito esperança para nós, então a sua morte era esperada. Acreditei que foi um processo importante para trabalhar meus sentimentos. Com certeza, é diferente quando recebemos a morte de um jovem saudável, em um acidente inesperado, em comparação com a morte de um idoso que arrastou os últimos dias na cama. Mas para a Psicologia, o luto de uma ocasião e outra dói do mesmo jeito.

— Não acho que a morte do meu pai me afete tanto — eu disse para a psicóloga, em nossa segunda consulta.

— Por quê? — Perguntou ela.

— Ele estava sofrendo bastante e chegou a pedir para morrer algumas vezes. Acredito que tenha sido melhor assim.

— Pelo que você me contou, o seu pai representava uma parte fundamental, o pilar da sua família.

Na semana pós copa do mundo, passei a sentir uma solidão muito forte, um vazio existencial, como se um buraco em meu estômago tivesse sido aberto. Não sabia identificar de onde vinha aquele sentimento, mas sabia que tinha algo estranho acontecendo dentro da minha cabeça.

— É como se antes a minha vida passasse dentro de um castelo rodeado por muralhas seguras — afirmei —, e as muralhas tivessem desmoronado.

— Você se sente assim sem o seu pai? —, Indagou a Psicóloga.

— Sinto. Eu não sabia definir essa emoção, agora sei.

— O seu luto ainda é recente. Vamos trabalhar nisso.

Depois de muito tempo focada em montar o castelo, Luísa terminou a brincadeira. Ela ficou feliz ao ver Hogwarts em miniatura, mas sua empolgação deu lugar a um misto de decepção e raiva quando um vento forte passou pelas janelas e desmontou as peças de lego formavam os muros. Ali eu tive a minha grande reflexão.

É possível dizer que todas as pessoas têm o seu próprio mundo, que se desenvolve após o nascimento. Nos primeiros anos, a evolução será lenta e à medida que crescemos damos forma a ele. Imagine esse mundo como a construção de um edifício, onde o propósito é construir um lar que seja confortável. Por não existir um propósito universal, o lar de cada um é feito conforme seus aprendizados, sua cultura, seus gostos e a sua vontade. Nós damos sentido para a vida construindo os pedaços da nossa casa, colocando os tijolos e levantando as paredes. É uma explicação metafórica que simboliza muito bem a existência humana. Quando vivenciamos o luto, temos a sensação que uma tempestade passou e destruiu as muralhas do nosso castelo. A partir daí, precisamos buscar forças para levantar novamente a nossa fortaleza. Caso contrário, nos sentiremos impotentes, desprotegidos e vazios.

Um grande fator que contribui para o vazio existencial é a tecnologia. A Grande Revolução Tecnológica trouxe um desenvolvimento massivo de celulares e computadores. Tal revolução mudou a forma como vivemos, modificou profundamente as indústrias e alterou as relações humanas. Por isso, muitos consideram que esse é um período conturbado da história, em que a internet tem um efeito prejudicial em nós.

Zygmunt Bauman, um sociólogo polonês famoso por cunhar o termo "modernidade líquida", usa a expressão para descrever uma condição social e cultural das sociedades contemporâneas, marcadas por indecisões em muitas áreas da vida. Bauman argumenta que, na modernidade líquida, os papéis sociais fixos, laços familiares e crenças religiosas foram trocados por uma constante mutação e pela flexibilização de tudo ao nosso redor, nascidas nos cais da internet. A globalização permitiu, desde o acesso diversificado aos lugares e o conforto de comprar um produto sem sair de casa, até a facilidade para encontrar relações amorosas, fazendo com que as pessoas vivam em um estado de constante incerteza.

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