Passado

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Acordo no meio da noite, o que acontece com frequência desde que sai da cadeia, me viro para o lado e vejo que Maria não está na cama, me levanto procurando por ela dentro da casa e nada, meu coração começa a acelerar, a porta da frente está aberta e corro para lá.

Respiro aliviado, porque ela está ali apenas sentada na calçada observando o céu. Já faz dois dias desde o nosso primeiro encontro e estou ansioso pelo segundo, mas ainda não conseguimos marcar, por que meus horários são muito loucos por trabalhar em um bar a noite. Visto uma blusa de moletom e vou até ela, me sento ao seu lado, no meio-fio.

— Oi. — digo com um tom de voz suave.

— Oi, gatinho. — responde ela sorrindo, mas noto que ela limpou uma lágrima do rosto.

— Ei, o que foi, amor? — passo minha mão por sua bochecha a ajudando a secar a lágrima e ela se arruma sentando para ficar um pouco mais de frente pra mim. — Você pode falar comigo.

— Só se você falar comigo também.

— Claro, o que você quer saber?

— Me fale sobre a prisão.

— Eu fiquei puto, no primeiro dia, por isso foi fácil arrumar confusão e nisso eu acabei colocando um alvo nas minhas costas, eu quis pagar de durão, mas nos dias seguintes eu só queria chorar e depois gritar pra alguém me tirar de lá. — descrevo. — Sinceramente, não achei que alguém ia se preocupar em me tirar de lá, a cidade já tinha me escolhido como culpado. Nunca me senti tão sozinho, tão desamparado na vida, depois que comecei a arrumar brigas, uns caras me chamaram pra fazer parte da gangue deles e eu teria proteção lá dentro, e só pelos rivais me verem conversando com eles, eles se reuniram e me bateram, acho que se eu continuasse lá, alguém ia conseguir me matar. É como ficar preso não só literalmente, mas preso na sua própria mente, ninguém te conhece de verdade, ninguém se importa se você é culpado ou inocente, pensaram até que eu era um informante, eu tive que lutar pela minha vida. Então por mais que eu sorria para meus clientes, ame meus funcionários, eu não consigo confiar em ninguém.

— Eu sinto muito — ela diz encostando a mão quente no meu rosto — Espero que um dia possa confiar em mim. — ela abre um sorriso e eu pego sua mão e dou um beijo.

— Sua vez.

— As vezes eu sinto nojo de mim mesma. — seus olhos começam a lacrimejar — Ele não abusou sexualmente de mim, mas eu senti que este dia estava chegando, eu tentei ganhar a confiança dele, deixei ele me tocar, me beijar. — Maria para de falar e passa o polegar e o indicar nos olhos para conter as lágrimas — Eu fingia que ele era só um cara que eu conheci e que estava saindo com ele, na casa dele, só pra escapar da tortura, sei lá talvez dar um alívio pra minha cabeça. Ele me deixava sozinha, sem comida, sem luz, quando eu perguntava algo sobre você ele me batia. Ele me bateu várias vezes, ele me fez acreditar que tinha te matado e que ele tinha me culpado e eu acreditei porque ele tinha feito a mesma coisa com você.

— Maria...

— Eu quero acreditar que tive sorte por ter ficado só dois meses lá, sorte por ele não ter me agredido sexualmente, sorte por estar viva, porque eu sei que existem garotas por aí que passam a vida toda presa assim e ninguém descobre e ela tem filhos com esses caras, e eu não quero ser ingrata, não quero reclamar, mas ele me quebrou completamente, Phil... — ela começa a soluçar de chorar e eu coloco sua cabeça no meu ombro e a faço carinho. — Por que eu me permiti ceder e ficar tanto tempo lá? Por que eu não reagi antes? — diz ela levantando a cabeça e olhando pra mim — Em alguns momentos eu quis tanto a aprovação dele, que ele gostasse de mim, as vezes me perdia no que era verdade e no que era mentira, quando ele me deixava sozinha lá e depois de alguns dias voltava eu ficava aliviada por ele aparecer e ter alguém pra conversar, eu ainda sinto a corrente no meu tornozelo.

— Maria, eu sinto muito mesmo.

— Quando eu esfaqueei ele e sai correndo, pensei que tinha o acertado uma vez, não entendia porque meu vestido estava todo sujo de sangue e porque meus braços estavam doendo, então eu me lembrei, eu esfaqueei ele tantas vezes que os órgãos dele começaram a sair. E depois disso tudo, eu ainda me senti mal por ter matado o desgraçado.

— Por que você é uma pessoa boa.

— Não eu não sou, porque pensando nisso hoje, eu sinto orgulho de mim por feito aquilo. Eu gostei de ver a vida saindo dele, gostei de ser eu a pessoa a fazer isso, ele quase matou você. Ele matou várias garotas inocentes.

— Você é uma vingadora. Foda pra caralho. Está me ouvindo bem? — sorrio pra ela — Você o matou não só pelo o que ele fez pra você, mas por todas elas, também tenho orgulho de você.

— Obrigada, mas toda vez que escurece e eu fecho os olhos, volto pra la.

— Sei exatamente como é isso. É horrível pra cacete.

— E o que a gente faz? — pergunta ela sorrindo.

— A gente junta os cacos e recomeçamos. Seguimos em frente ou tentamos, toda essa parada de autoajuda e blá blá blá.

— Excelente conselho. — ela ri. Depois de tudo o que acabou de contar ela ri, e meu coração para por um segundo antes de voltar a bater — Eu quero ter uma vida normal, ter encontros, com você, claro — ela ri — Mas, eu não sei explicar, não parece como seguir em frente, parece falso, me entende?

— Te entendo, mas o que mais nos resta? — dou de ombros.

— Você já chegou a pensar que eu não voltaria, que eu talvez estivesse morta?

— Não. Nunca. — respondo firme.

— Eu não sei o que dizer. — ela sorri. — Talvez eu devesse começar a fumar.

— Não mesmo! — solto uma risada — Nós vamos superar tudo isso, gata. — sorrio e me levanto ofereço minhas mãos que ela segura e a levanto.

— Eu estou meio que de saco cheio de superar as coisas, fazer tudo certinho. — ela me abraça e começar a nos mexer na rua dançando mesmo sem música alguma, como dois loucos.

— O que você vai fazer?

— Eu não faço ideia, gato.

— Vem, vamos caminhar um pouco. — digo, e poucos minutos depois começa a nevar.

Quebrados - (versão do Phil) Onde histórias criam vida. Descubra agora