Epílogo - O começo do fim.

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O domínio da Dona Morte recebeu muitos nomes com o passar das eras. Mundo Inferior, Hades, Pós-Vida, Céu, Inferno...

Os mortais conseguiam ser criativos quando queriam.

Nos últimos milênios, havia se tornado um costume chamá-lo de Regnum Mortuorum, ou Reino dos Mortos. A Arauta do Saber declarara que esse seria o melhor nome a ser usado e ninguém resolveu contestar, não em sua presença.

Lá, não havia Sol, tampouco havia céu.

Era sempre escuro, mas ainda assim não era exatamente frio.

O domínio ficava de ponta cabeça no subterrâneo, encarando o vazio e a imensidão do vazio das entranhas de uma terra sagrada e inexplorada, longe do alcance dos mortais. O abismo era pontilhado com brilhantes pedras preciosas e magma.

Havia uma imensa pólis entalhada em obsidiana com várias repartições.

Uma delas eram os Campos de Punição, onde almas pecadoras iam dia após dia para pagarem pelos seus erros devotando sua mão de obra à sua anfitriã, trabalhando para manter o Reino dos Mortos funcionando.

Não por acaso, os campos mais pareciam um grande distrito industrial, cheio de fábricas de lapidação de escavação, cujos sons preenchiam o vazio do abismo.

Do outro lado, a metrópole se estendia, servindo de abrigo aos demais mortos que não viam pressa em voltar ao mundo dos vivos. Haviam cassinos, comércios, casas e apartamentos, lanchonetes... Tudo para o conforto das almas de todos os seres que existiam naquele vasto e diverso universo.

De todo modo, o Reino dos Mortos era um lugar agradável para se estar. Era o destino final de todos os vivos, o primeiro destino dos mortos – e também, o lugar que um certo Etéreo chamava de casa.

Sax desprendeu-se das Trevas defronte à escadaria do Palácio Sombrio.

Ele estava exausto, completamente surrado e, o pior, havia estragado o casaco de aviador que pegara emprestado de Cello. Isso para não comentar as dores de estômago e na língua depois de sua recente experiência com taco apimentado na Terra, ou então o fato de ter saído escondido outra vez.

Em outras palavras, ele estava completamente morto se o descobrissem!

Seu otimismo durou tanto quanto sua sorte. Sax subiu os degraus de pedra negra polida com pressa, parando vez ou outra para beber outra caixa de leite. Havia adquirido várias dela. Era uma bebida ótima, revigorante, mas seu gosto deixava a desejar – e fazia seu estômago revirar sempre que bebia.

Cypher havia sido muito cruel em enganá-lo e chantageá-lo daquela forma...

Quando ela havia ficado tão sádica? Ela era tão tímida e quieta, mais até do que Ária. Ao mesmo tempo que resmungava, não podia culpá-la. O tempo mudava a todos, até mesmo aos mortos.

Apesar de amar passar tempo na Cidade das Almas, achou melhor não passar por lá por ter medo de desconfiarem de sua saída. Quando alcançou o topo da escadaria, já com a última caixinha de leite, Sax não havia notado que talvez pudesse justificar sua ausência com outra fuga ao bairro mexicano.

Quando notou, já era tarde demais.

Ora, ora a escuridão soou fria e baixa, como um lamento. — Então foi aí que meu casaco foi parar.

Sax sentiu seu coração parar na garganta.

Ele cuspiu todo o leite e se virou, vendo um rapaz bonito de bronze e cabelos longos sair das sombras. Seu olhar era tão afiado quanto a ponta de seu nariz parecia ser. O pálido sentiu os joelhos amolecerem, mas também poderia ser a dor em sua barriga.

Cello esquadrinhou Sax de cima a baixo antes de suspirar, massageando o cenho.

— Onde diabos você esteve, Sax? Você está acabado. Não me diga que brigou com aqueles franceses de novo... Pela última vez, Gato Idiota, você não tem nada a ver com o Cinco de Mayo. Nem mesmo mexicano você é!

— A-AH! Eu não briguei, eu juro!

— Hum, então por que suas roupas estão...?


Seu passeio foi proveitoso, minha criança?


Uma voz gélida e cortante, mas estranhamente acolhedora, ecoou na mente dos dois ao mesmo tempo que a forma de uma mulher muito pálida, de cabelos e vestido longo de cor negra profunda, como a escuridão do abismo acima deles ou do céu noturno da superfície, surgiu diante dos dois e parou defronte à imensa porta dupla de seu palácio.

Leyruz, a Anfitriã das Almas, encarou-os com serenidade e apatia.

Um suspiro escapou de seus lábios delicadamente esculpidos em seu rosto ao ver que Sax havia se escondido atrás de Cello ao vê-la, como sempre. Por que todos a enxergavam como uma ameaça sempre?

— E então? — insistiu. — Conseguiu fazer o que queria?

Sax não respondeu, mas tampouco foi preciso.

Cello o sentia tremer das cabeças aos pés, completamente apavorado. Culpa. Uma hipótese matutou em sua têmpora raspada e rapidamente ganhou força. Sax estava ferido com contusões e cortes, mas não esteve na província francesa. Suas roupas estavam manchadas, molhadas e, agora, sujas de leite. Seu hálito cheirava a taco. Nos últimos dias, ele havia ficado mais rancoroso e fechado. Coincidentemente ou não, desde que Cello havia sido afastado de suas funções como ceifador ao ser derrotado em uma batalha que não era sua.

Só havia um lugar para onde ele iria se quisesse comer taco, beber leite e apanhar daquela forma, e era justamente o único lugar para onde ele não podia ter ido.

Leyruz sabia que Cello ia fazer algo, mas ainda assim foi surpreendida.

— ... Eu o mandei à Terra — disse, sem um pingo de hesitação. — Eu quis me vingar da Ária e daquele mortal pelo afastamento de minhas funções, mas não podia sair sem levantar suspeitas. Eu pedi que Sax fosse no meu lugar. A culpa pelo que aconteceu é inteiramente minha. Eu assumirei total responsabilidade por isso,

A Dona Morte olhou de um para outro, intrigada.

Sax estava a um passo de desmaiar de pavor enquanto Cello portava uma serenidade e frieza impressionantes, mesmo enquanto mentia para sua Anfitriã. Ele estava mesmo disposto a ir tão longe assim pelo gatinho assustado que tremia às suas costas?

Mas é claro, era isso que seu olhar dizia. Ele estava, e sempre esteve, independente do que isso lhe custasse...

— ... Pois bem — murmurou, sem saber o que fazer com aquela dor no peito. — Venha comigo.

As imensas portas de pedra se abriram.

Minutos mais tarde, um único som ecoou por todo o Reino dos Mortos, cortando até mesmo o ruído das fábricas e das vozes da Cidade das Almas. Era agourento, como o indício do mal que estava por vir...

O crocitar de um jovem corvo se debatendo em agonia foi o início do fim.

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