Capítulo 6- Desobediência

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Foram os sons do homem remexendo os suprimentos que o despertou. Entretanto, à diferença de alguns mundos solares, nenhuma aurora lhe dera bom dia. Não houve cantar de pássaros matinais e não houve raios de luz atravessando janelas, pois a penumbra constante ainda reinava na planície arenosa. Foi assim quando acordou, e será assim quando o tempo varrer aquele cone rochoso da existência.

"Bom dia, já são quase 2/8 de ciclo", disse o Inválido, olhando para o céu lá fora, "Tenho que sair para caçar agora, há um pouco de ensopado na panela ali. Coma e fique aí enquanto eu não volto". Em seguida colocou seu grande saco no ombro e saiu sem mais cerimônia.

com o olhar mirando as pegadas deixadas na areia, o Errante se pôs sentado. Tentou mexer a perna. Apesar de ainda doer, parecia bem melhor, talvez conseguisse andar. Ao se pôr de pé, obteve um certo equilíbrio, suficiente para mancar até a panela. Lá encontrou um caldo de aparência insossa, serviu um pouco e provou. Surpreendentemente o gosto estava insosso, mas se forçou a comer sob recomendação do companheiro.

É um pouco triste que aquela sopa medíocre fora sua primeira experiência culinária após despertar sem memória da redoma. Tantos pratos maravilhosos que circulam inclusive lá mesmo, no deserto, e a sorte o fez encontrar justamente o pior dos cozinheiros. Lamentável.

Após terminar sua "refeição", retornou ao pano que fizera de cama e pensou no que iria fazer. O mais recomendável, é claro, seria seguir as instruções do Inválido de permanecer na caverna, mas obviamente não o fez, considerando que as perguntas urravam mais alto que qualquer lógica. Queria perambular, procurar, descobrir. O que era a torre com a luz? Quem são os criadores que ele mencionou?

Tomou a decisão: sairia da caverna e retornaria antes do retorno do homem. Para isso, tomou um bastão que jazia em meio aos suprimentos e partiu a caminhar desajeitadamente pelo deserto

Sem saber ao certo onde ir, começou a andar em volta da entrada da caverna. E se fosse em direção à luz? Não. Ela está longe demais, não conseguiria voltar a tempo. Logo teve a idéia de subir em uma pedra para melhorar o campo de visão, e avistou algo que lhe chamou a atenção: um vulto grande se movendo lentamente pelas dunas. Ao se aproximar, viu se tratar de uma espécie de carroça fechada, puxada por um jumento. Aparentemente notaram a presença, pois assim que chegou perto o carro parou.

 Aparentemente notaram a presença, pois assim que chegou perto o carro parou

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"Olá olá, meu bem! Veio dar uma olhada nos meus maravilhosos produtos?", perguntou uma voz nasal feminina vindo de dentro do carro, "Nós temos as melhores tapeçarias, pinturas e cerâmicas do Universo! Tudo por um preço razoável!"

Em seguida uma cabeça surgiu na janela. Era uma cabeça feia, enrugada, gorda, cheia de penduricalhos e com uma maquiagem exagerada. Levava um turbante cor de vinho e um óculos minúsculo.

"Eu sou a Comerciante", disse a cabeça, "criadora de riquezas! E você, meu bem, quem é?"

"Me chamam de Errante", respondeu. "Você por acaso sa.."

"AAAH, mas você está no lugar certo!! Eu possuo todo tipo de artigos para viajantes sem objetivos definidos", interrompeu a velha enquanto remexia sua coleção, "Que tal essa pintura a óleo do Deserto? Pode servir de mapa!"

"Soa estranho, mas talvez funcione", disse o menino, receoso, quando um quadro gigantesco e pesado lhe foi entregue, "Eu precisava mesmo de uma maneira de me localizar, obrigado!"

"Custa 30 mil glípti, mas para você que é educado eu faço por 20 mil", a mulher completou. Trazia um olhar faminto, como que prestes a saborear aquela deliciosa refeição que fora servida na elegante bandeja de tampa de prata.

"Mas... eu não tenho nenhum... ", respondeu um rosto tristonho.

"Ah, meu bem, não fique triste! Sorria!", Consolou a Comerciante, mais por medo de perder um cliente que por piedade. "Olhe só, vou recitar um poema para você então, do nosso melhor poeta: O Poeta! Ahem."

Ó Amor, como tanto a amo!
Que de nosso amor não haja engano!
Por isso imploro ao poderoso Amor,
Que não te traga jamais alguma dor!

Ó Amor, como tanto a quero!
Que nosso amor seja sincero!
Por isso imploro ao poderoso Amor,
Que não te traga jamais algum temor!

Mas ai de mim! Não me desejas!
Pois cavalheiros não te faltam,
Servidos em ricas bandejas!

Ai, que estas palavras te atinjam!
E que finalmente percebas,
O quanto meus amores me atentam!

"Lindo, não é?", finalizou a Comerciante, "Está me devendo 400 glípti."

Entretanto, o protesto revoltado do Errante foi rudemente calado por um dedo gordo que dizia "Nananã, meu bem, você escutou o poema, logo consumiu o produto! Está me devendo 400 glípti. Sem discussão."

"Tá bom, certo, você venceu", disse o menino já irritado, "mas antes me diga o que é aquilo.", e apontou para o ponto brilhante no topo da torre ao longe.

"AAAAH, meu bem, mas aquela é a torre da biblioteca da capital! Você está me devendo mais 400 glípti agora."

"Chega! Você é diabólica!", exclamou o Errante já furioso, "Vou ver se o Inválido tem algum pra me ceder"

"O que você disse?", sussurrou a velha, assustada. Naquele instante, a cara pálida de pó de arroz conseguiu esbranquiçar-se ainda mais, tamanho o horror que fora invocado por aquele nome. "Você encontrou o Homem Sem Mãos?"

"Sim, nós somos amigos... eu acho."

A sombra que pairava sobre a conversa se adensou à luz daquela informação, e a Comerciante passou a esquadrinhar o horizonte, temendo que um par de ganchos de ferro surgisse repentinamente das dunas.

"Escute com atenção, guri", alertou a mulher, apavorada, "Fique longe dele. Ele é perigoso. Esqueça a sua dívida, só fique longe de mim! Saia! vai! SAIA!"

Após este grito desesperado ela rapidamente recolheu sua cabeça da janela e fechou as venezianas, anunciando que seus produtivos negócios estavam encerrados. Em seguida, estalou as rédeas do jumento e a carroça começou a se mover, deixando o menino a sós com seus pensamentos.

"Perigoso? Seria o homem realmente perigoso? Ele curou meu joelho, não pode ser tão ruim assim. Ruim mesmo é aquela mulher, que tentou me passar a perna! Se ela não gosta dele é perto dele que eu devo ficar", pensou sem muita convicção.

Sob o silêncio da dúvida, outra para a coleção, ele retornou mancando para a caverna apoiado na vara e, para seu alívio, chegou antes do Inválido. Guardou o apoio que pegara emprestado e deitou-se no seu canto, como se nada tivesse acontecido.

Algum tempo depois, o homem retornou com seu saco, pousou-o no canto e olhou calmamente para a entrada da caverna ou, mais especificamente, para as pegadas na areia que iam e vinham, delatando o passeio de seu hóspede.

O Ateliê de RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora