Ainda que jamais houvesse caminhado àquela direção, dificilmente erraria o caminho, pois a torre da biblioteca na capital despontava das dunas e, de seu topo, uma luz irradiava ferozmente como um farol, marcando uma sedutora ilha de respostas em meio ao mar de dúvidas.
Um recém chegado como ele, desconhecedor dos métodos de navegação e localização, não seria capaz de perceber a inteligência por trás do posicionamento da capital: O exato centro do deserto. Nesse sentido, circulam histórias de que do topo da torre nenhuma montanha ou duna oculta as estrelas, todas são visíveis. Uma visão perfeita da noite em todas as direções.
E de fato se via noite em todas as direções, aquela penumbra fria e constante.
Longa e cansativa fora a caminhada. A areia parecia interminável, e a torre, tão distante, ainda que visível, aumentava vagarosa demais para que a diferença progressiva de tamanho seja percebida, qual os ponteiros de um relógio, ocultando seu giro até que a volta esteja completa.
Areia, passos, frio.
Os ponteiros se recusavam a girar.
Várias vezes no caminho pensou em recuar, voltar para o pseudo conforto do abrigo entre as rochas, o nada que não era nada, mas o teve, e por o ter fora mais que nada.
Tarde demais, já não o tem mais, sussurrava o vento áspero.
E continuava em frente.
Enfim, após o que pareceu uma eternidade, avistou os muros, assim como o grande portão que lhe dava boas vindas. A cidade em si se localizava em um oásis, com palmeiras altas que subiam além das muralhas, assim como pequenos arbustos e folhagens pelo chão, tingindo a palidez sóbria do deserto com agradáveis tons de verde.
Finalmente teria respostas. Ao se aproximar percebeu um ir e vir de mercadores, carroças e, principalmente, seis homens pálidos vestidos inteiramente de branco guardando a entrada, três de cada lado do portão e de costas para o muro.
Assustou-se com a visão daqueles guardas, pois causava espanto não apenas a estatura fora do comum como a maneira como agiam, silenciosos, rígidos. Irradiavam uma aura fria, e apenas um movimento de cabeça de um deles a fim de examinar uma carruagem impediu que o Errante os confundisse com estátuas.
Quando se aproximou dos portões, esperou que os vigilantes fizessem perguntas, que exigissem algum tipo de documento, ou que o revistassem procurando algo ilegal;
Entretanto, eles apenas o observaram fixadamente. Todos os seis ao mesmo tempo, sem dizer uma única palavra, sem nem piscar, enquanto o menino adentrava receoso as ruas da cidade.
Navegou pela avenida, encantado com as casas cavadas em rocha sólida de arenito, fechadas com janelas e portas de tábuas. Nenhum passante lhe parecia dar atenção, salvo um par de olhos escondidos o observando curiosamente através de uma das frestas, mas que recuou à escura toca ao ser chamado.
Sobre o zumbido do movimento gradativamente se ergueu o lamento agudo de uma viola. A bela e triste melodia se originava de uma mulher sentada na sarjeta. Vestia trapos rasgados, e seus cabelos sujos e malcuidados caíam pelos ombros. Apesar disso, em piedosa verdade digo que ela já fora bonita, quando em um passado mais gentil.
Ninguém prestava atenção à música, salvo um menino em um manto cinzento que passava e, hipnotizado, se sentou na calçada próximo a ela, ouvindo sem atrapalhá-la.
O tempo era lento, semelhante à valsa de um dançarino solitário e o choro, em melodia menor, se recusava a descansar na paz de uma tônica. Se repetindo sem fim, sem sossego, sem piedade, o arco torturando as cordas.
Enfim, uma sétima encerrou a peça, a privando da real conclusão e, quebrando o rastro de silêncio que sempre segue o término de uma música, a mulher dirigiu a palavra ao seu único ouvinte.
"Obrigada por ouvir", disse ela sem mover o rosto. "Não creio ter encontrado você antes, menino. Faria a gentileza de ceder alguns glípti para uma pobre violista?"
"Eu sinto muito, não tenho moeda nenhuma. Se eu tivesse eu te daria", respondeu com tristeza, ao que ela retrucou: "Ah, claro que não tem. Eu devia ter imaginado. Nunca vi um desses nobres endinheirados parar para escutar música que vem da sarjeta. Apenas ratos apreciam a sujeira."
"Mas a música é linda, onde você aprendeu a tocar?", comentou. Em seguida a mulher virou a cabeça na direção do outro e o encarou com seus olhos completamente brancos. "Sozinha, é claro. Quem aqui ensinaria uma cega? Você não é daqui, é?".
Após o comentário da mulher, percebeu que o antigo colega não foi o único impedido de ter um professor. "Não, não sou", respondeu, "Vim pois precisava entrar na biblioteca, você sabe como posso chegar lá?".
Imediatamente a mulher explodiu em uma gargalhada. "Entrar lá? Você? Na biblioteca? Alguém ainda mais pobre que eu? Você nunca vai entrar lá, ela é restrita só à família real e aos mais importantes criadores. Sinto muito rapazinho, não tem como."
"Mas de qualquer forma, te desejo boa sorte", continuou, "Seria bom se algum de nós pudesse ver o que tem lá dentro, pra variar."
"Agora, peço licença. Preciso da piedade de alguém". E retomou a melodia triste.
Vendo que a conversa terminara, o menino se levantou, curvou-se em gesto de despedida que ela não percebeu, e continuou a caminhar pelas ruas.
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O Ateliê de Rascunhos
Mystery / ThrillerCentral ao nada, onde a noite cerra, Fica o eterno Ateliê de Rascunhos, Alheio ao tempo, alheio à terra. Lá jaz Ela e, de seu próprio punho, Pinta a arte, pinta os mundos, e pinta a guerra. _____________________________________ Um menino acorda sem...