Capítulo 8- Morte de Uma Caça

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O medo é algo interessante.

Ele distorce as percepções, nos mantém alerta, procurando e vendo perigo em todos os lugares, estando lá ou não. Nesse sentido, ele é o único e verdadeiro criador de monstros.

Entretanto, o medo também mantém as pessoas vivas, cautelosas, preparadas. Estatisticamente, os medrosos demoram um pouco mais para morrer, pois é muito mais difícil esmagar um inseto que tem horror de você a um que corre em sua direção, flertando com o perigo como aqueles dois imbecis.

Eu não me considero medrosa, mas seria mentira se dissesse que não temi um pouco pelo futuro do pequeno Errante, não quis que sua jornada encontrasse um fim súbito logo no primeiro conflito, em direção ao qual marchavam lentamente através das dunas iluminadas pela tênue luz do cosmo que engolfa o deserto.

Durante a caminhada, fora feito um comentário óbvio, não realmente necessário para que o homem soubesse como o companheiro se sentia. Ele, assim como eu, já adivinhara.

"Estou com medo," disse o menino, segurando com duas mãos trêmulas a lança que lhe fora entregue.

"Você seria um tolo se não estivesse," respondeu o Inválido, esquadrinhando a paisagem e o céu à procura de movimento.

O homem já explicara que um amigo na cidade relatou o avistamento de uma das criaturas no quadrante norte, próximo ao ponto médio entre os oásis centrais e a borda.

Ainda que o ambiente estivesse parcialmente escuro, não seria um grande desafio avistar o alvo à distância, pois o contraste entre as areias brancas e a couraça negra típica dos monstros que buscavam sobressai à vista. A não ser, é claro, que se encontre em seu ambiente natural: o vazio entre os mundos. Sendo este o caso, sua presença só é revelada pelo ofuscamento das estrelas detrás de si e, sendo este o caso, torço para que permaneça lá.

Por um catastrófico lançar de dados, o par não avistou o demônio circulando o zênite acima de si como um abutre, em silêncio, estudando os caçadores a fim de os tornar caça.

Era um monstro medonho, com um corpo negro alongado, similar a uma enguia, pontuado por diversas nadadeiras usadas para navegar os ventos. Além disso, a cabeça possuía uma mandíbula protuberante e comprida, grande o suficiente para engolir uma pessoa. Entretanto, o que mais assustava eram os diversos olhos fendidos

Eu esperava que acontecesse mais tarde, mas não há sentido em lamentar a situação. Agora, creio, a única coisa que me resta é apreciar o desenrolar deste belo pedaço de entretenimento diante de meus olhos. Afinal, se a morte não vier agora virá mais tarde de qualquer forma, como o próprio bicho, que escolhe cuidadosamente o momento certo de dar o bote.

Círculos longos e lentos no céu, longe do campo de visão. A areia formando feixes ao vento, sibilando nos ouvidos. Os dois, andando juntos e atentos a tudo. Ou pensavam que a tudo.

Ao escalar a crista de uma duna, revelou-se uma visão familiar, pelo menos para um deles. A torre da capital.

Uma distração. O mistério invisível sussurrava no ouvido e estendia a mão. Tentando agarrar instintivamente o horizonte, o menino deu alguns passos à frente. Criou distância entre os dois.

Em um instante o joelho o traiu, o derrubando na areia em uma cambalhota. Em outro instante o animal oculto mergulhou como uma águia. Não haveria oportunidade melhor de refeição. Fora visto por ambos, um deitado na areia virado para o céu e o outro correndo ao seu encontro.

Medo. Ele fluía pelas veias dos três. Não existia mais dor, não existia mais tempo.

O mais rápido que pôde rolou para a direita. Sua vida dependia disso. Agarrou a lança e a apontou para o céu, aguardando o encontro.

O som do grito da fera calou as areias. Ainda que longe de fazer um estrago real, o golpe deu tempo para o mais jovem se afastar e o mais velho se aproximar. Agora os três se viam recuperados do susto e em posição. Ordens rápidas foram gritadas. Ah, mas de que importa? Apenas a adrenalina pensava.

Outro bote, novamente em direção ao mais vulnerável. A cabeça avançava, boca aberta tentando agarrar. Desviou como se o incômodo do joelho nunca houvesse existido. Não foi suficiente. O bico afiado acertou a lateral do abdome. Um gemido reprimido e um grito selvagem de dor. O pescoço encouraçado do animal, exposto pelo bote, encontrou três garras de ferro. Por resposta impulsiva o corpo se contorceu e golpeou o homem, o derrubando.

Sangue arroxeado escorria do corte triplo. Sangue avermelhado escorria do corte profundo. A areia já não estava mais branca.

Com uma mão na lança e outra no tronco correu em direção ao companheiro caído. Um urro nas suas costas. A fera o perseguia. Rápida. Jamais daria tempo para respirarem.

O companheiro ainda se levantava. Não havia tempo.

Com a maior força que ainda possuía atirou sua lança na coisa. Uma mancha roxa cobriu a visão do animal. Havia acertado os olhos, furando um e manchando os outros. Líquido espesso jorrava do buraco. Tempo precioso foi comprado, correu até o colega ainda um pouco atordoado. Estendeu a mão e o levantou. Quando visaram a fera, o inválido não pensou. Antes que ela pudesse se recuperar da visão perdida, correu cambaleando em direção à fera atordoada.

Saltou no rosto que se debatia. Rasgou fora aqueles olhos da face.

Em seguida, enterrou a mão de ferro no crânio da criatura através das órbitas.

Um baque surdo silenciou os gritos furiosos;

E o silêncio do deserto voltou a sibilar.

O Ateliê de RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora