Não queria o abandonar, e não queria o acompanhar. Incertos e hesitantes corriam seus pensamentos, seria um desaforo deixá-lo, depois do joelho? Da batalha? Da sopa maravilhosa? Uma decisão tão decisiva que postergara aplicá-la por dois ciclos.
Por dois longos ciclos acompanhou o colega em corpo, mas vagou em mente. Por dois ciclos se deitou com conflitos mentais ao invés de sonhos e por dois ciclos se culpou de algo que nem sequer havia feito.
No entanto eu só vejo uma possibilidade de desfecho para o impasse, haja vista que o chamado enraizado em seu inconsciente clamava ensurdecedoramente, e as meias respostas trocadas durante as caminhadas não passavam de migalhas para um faminto. Logo, ao despertar do terceiro ciclo, finalmente tomou coragem.
Antes do companheiro se despertou e, tomando cuidado para não o acordar, furtivamente vasculhou os suprimentos buscando materiais de escrita, a fim de deixar um bilhete. Se desaparecesse de repente, o colega iria procurá-lo crendo ter sido capturado ou devorado.
Não havia tinta ou pergaminhos, pois eles eram inúteis para alguém com mãos de ferro, mas encontrou alguns pedaços de pano, passíveis de serem rabiscados com os cacos de carvão da fogueira.
Pensou no que iria escrever. "Um momento, sei escrever?" "Sei!". "Mas como? Ninguém me ensinou!" Assim, mais uma incógnita se une à equação daquele pobre rapaz.
Superada a confusão inicial da habilidade oculta recém descoberta, escreveu a mensagem e a deixou sobre o lençol que usava de cama, para que o homem a encontrasse quando notasse ausência.
Seria uma peregrinação vazia em si para sanar um outro vazio em sua alma.
Nenhum pertence o acompanharia na jornada, salvo uma vara de trilha e seu velho manto.
Nenhum demônio esfomeado o perseguiria, salvo a fatiga e o tempo, que tudo consomem.
E nenhum amigo fiel o faria companhia, salvo eu, e meu olhar sempre vigilante.
E talvez também o silencioso e compreensivo olhar de um inválido que fingia dormir, enquanto mirava o amigo desaparecer além do horizonte.
Querido amigo,
Eu sinto muito por deixá-lo assim, mas eu preciso ir para a capital e explorar a biblioteca, pois a nossa vida no deserto jamais me dará as respostas que tanto desejo.
Por favor não me odeie e não me siga.Com carinho,
Errante
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O Ateliê de Rascunhos
Mystery / ThrillerCentral ao nada, onde a noite cerra, Fica o eterno Ateliê de Rascunhos, Alheio ao tempo, alheio à terra. Lá jaz Ela e, de seu próprio punho, Pinta a arte, pinta os mundos, e pinta a guerra. _____________________________________ Um menino acorda sem...