O sangue que cobria o corpo do recém-chegado, parte seu parte não, não foi particularmente útil em apaziguar os sentimentos conflituosos do Errante.
"Você saiu da caverna," disse o Inválido. "Mesmo eu tendo pedido para não o fazer."
"Bem, sim..." admitiu. "Eu queria entender mais do deserto... Por que você está coberto de sangue?"
"Não importa," respondeu. "Você não deve sair sozinho de novo, é perigoso." Se aproximou um passo.
"Importa sim!", gritou o menino se levantando em um recuo. "Aquela mulher disse que VOCÊ é perigoso. Quem é você de verdade? De quem é esse sangue? Por que você me ajudou? ONDE ESTAMOS??"
Por um instante os olhares daqueles dois se cruzaram em tenso silêncio. Por um instante o mais velho ponderou sobre o que pensava daquele menino diante de si, do outro lado do círculo de cinzas o encarando em desafio, e por um instante a raiva do mais novo queimou, faminto por respostas.
O Inválido então suspirou, sentou e se rendeu: "Está bem. Sente-se, vou lhe contar uma história."
"Primeiramente, Inválido nem sempre foi meu nome, eu costumava ser o Ferreiro, e trabalhava em uma forja na capital como aprendiz do Ourives. Ele me ensinou a alimentar o fogo e moldar os metais, pois todos nós devemos ser criadores em algo, todos devemos ter um propósito. Nesse sentido, 'Deserto dos Criadores' não é um nome à toa. É a nossa filosofia, nossa religião, centrada em dois pilares: 'Qualquer tolo pode destruir, mas apenas mestres podem criar' e 'Sendo o mundo cruel e horrível é criando beleza que se sobrevive'."
"Foi sob esta ótica que eu vivi a maior parte da minha vida, aprendi a criar para um dia ocupar meu lugar na sociedade, mas então veio o acidente: enquanto eu preparava um molde, o mecanismo que despejava o ferro fundido quebrou, e eu perdi as mãos. Entretanto, ao invés de me consolar, meu mestre ficou furioso. Disse que era culpa minha o meu descuido, que devido à minha nova deficiência eu não poderia mais trabalhar o ferro e que graças a mim ele seria conhecido como um professor que não conseguiu criar um aluno"
"Em seguida, sem mais o apoio de meu antigo mentor, eu busquei novas oportunidades pela cidade, mas ninguém quis aceitar um aleijado como aluno. 'Você jamais será um criador,' eles disseram. Talvez eles estejam corretos, pois eu nunca fui capaz de criar nada depois que me machuquei."
"No entanto, como depois percebi, criar não é a única maneira de aumentar a beleza do mundo. Ao destruir o que é cruel e horrível, o mundo também se torna um lugar melhor, e é isso que eu me dispus a fazer, com as armas que agora levo no lugar das mãos."
Pousando os ferros perigosos no colo, o homem levantou o olhar e encontrou olhos carregados de assombro, porém também de compreensão, e continuou:
"De quem é esse sangue, você pergunta. Existem criaturas, monstros selvagens, que vivem além do deserto. Eu as caço para que não nos cacem antes."
"Por que eu botei seu joelho no lugar, você pergunta. Porque eu podia."
Finalmente, por um instante ponderou se deveria responder à pergunta e qual efeito a resposta teria no jovem. Bem, ele poderia deduzir a verdade de qualquer forma.
"Se eu sou perigoso, você pergunta. Eu sou o Homem Sem Mãos, detestado por todos, um destruidor entre criadores. Sim, meu jovem, eu sou perigoso, mas não se assuste, eu não tenho intenção alguma de machucá-lo."
O palpite do homem acerca dos pensamentos do jovem fora incorreto. Assombro? Sim, porém apenas pela crueldade permeada na história. Medo? Sim, porém apenas da presença sombria que vagava oculta no deserto. Em realidade, nenhum daqueles sentimentos negativos fora direcionado ao companheiro sentado consigo, apenas às circunstâncias nas quais se encontravam.
"Eu entendo agora, obrigado por me dizer a verdade," disse pausadamente o Errante, "mas eu não nunca criei nem destruí nada, onde eu entro nessa história?".
"Você é alguém alheio à equação, que vaga além desses conflitos, e é por isso que você me fascina tanto, sendo sincero," respondeu o homem, "mas creio que não será neutro por muito tempo. Amanhã você irá para a caçada comigo."
O menino se assustou diante da convocação, não tinha conhecimento algum nem sobre combate nem sobre o adversário, e temeu pela própria sorte. Entretanto, como logo explicou o Inválido, essa seria a rota mais segura, pois a curiosidade daquele estrangeiro de perambular pelo deserto inevitavelmente o levaria a um conflito com uma das criaturas, onde se encontraria sozinho e desamparado. Antes aprender e preparar-se agora que se arrepender depois.
Sob a perspectiva de ação no ciclo seguinte o par foi dormir, e as estrelas do céu perceberam o medo a infectar o sono do jovem.
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O Ateliê de Rascunhos
Mystery / ThrillerCentral ao nada, onde a noite cerra, Fica o eterno Ateliê de Rascunhos, Alheio ao tempo, alheio à terra. Lá jaz Ela e, de seu próprio punho, Pinta a arte, pinta os mundos, e pinta a guerra. _____________________________________ Um menino acorda sem...