Já ouvi dizerem algumas vezes que é tênue a diferença entre um plano estúpido e um genial. Tolice. Tal linha é muito bem definida: se funcionar é genial e se falhar é estúpido. Simples.
Nesse sentido, classifica-se como genial o Errante ter se sentado à mesa e discutido as habilidades líricas do Poeta, pois naquele momento encontrava-se sendo arrastado pela cidade à toda velocidade, com os pulsos puxados pela menina.
Através de vielas e becos eles correram, evitando sempre as ruas principais mais movimentadas. Naqueles corredores, sem a presença dos lampiões das avenidas e com as luzes celestes ocultas pelas paredes, as sombras dos prédios tornaram o caminho um breu absoluto, para o deleite dos gatos e gatunos.
"Então, você não me diss..."
"SHHHHHHH!!", ela sibilou. "Ou vai atrair a atenção das estátuas!"
Quais estátuas, se perguntou, olhando para as paredes e esperando que delas brotassem ouvidos espiões. Abriu a boca a fim de sanar tal dúvida, mas se conteve ao lembrar do aviso da companheira por silêncio.
Viraram em um buraco, estavam agora atravessando um túnel subterrâneo. Alarmada pelo som progressivo de passos, puxou ambos para um canto oculto e se manteve imóvel.
Esperaram, os passos aumentavam.
Som assustador, quem possui pés tão pesados, ele pensou.
O barulho aumentou. havia mais de um indivíduo.
Próximo à entrada do pequeno abrigo aqueles pés pararam.
Um...
Dois...
Maldito coração barulhento, cala-te ou seremos ouvidos!
Os passos retomaram, estavam se afastando. Tomaram meia volta.
O par suspirou aliviado e, livre do perigo, a menina voltou a guiá-los cautelosa para a direção aonde os passos se dirigiram.
À emersão dos dois fora ao túnel, a visão titânica do palácio lhes cumprimentou.
Aquele monumento esbranquiçado tomava a forma de um octógono gigantesco, cuja altura curvava-se para dentro semelhante a um tronco de pirâmide. Em seu centro, despontava uma única torre, se erguendo aos céus e, pelo seu topo, urrava luz poderosa qual um farol.
Encontravam-se laterais aos portões principais, e o menino pôde avistar uma porta pequena, possivelmente destinada à criadagem. Entretanto, ao fazer menção de se aproximar, a misteriosa companheira o puxou a um canto escondido e fitou concentradamente o céu.
"falta um tempo ainda para os empregados dali saírem. Esperemos aqui e nem um pio!", alertou.
E de fato esperaram por um intervalo que se dilatava interminavelmente, pois sempre que precisamos que o tempo seja curto ele demora. Eu sei de quem é a culpa disso, mas não importa agora.
Ao alinhar das estrelas marcou-se a hora crítica, e vozes irromperam por aquela porta.
Vozes lavadeiras, cozinheiras, faxineiras, todo tipo de vozes. Vozes alegres e fofocantes, aliviadas por mais um ciclo de trabalho exaustivo terminado, e distraídas não viram os dois vultos esgueirarem-se pela soleira, adentrando o proibido castelo.
Como se estivessem assistindo as duas sombras furtivas, as chamas das tochas moviam-se no ritmo da passagem deles, dançando e tremulando. Seguiram os corredores apertados e vazios feitos de mármore, com uma destreza surpreendente por parte da menina. Ela conhecia muito bem os caminhos, havia invadido o palácio antes?
Atrás de uma porta estava um grande salão octogonal, com escadas espirais de pedra iniciando em quatro cantos, dispostos em uma cruz. O menino olhou para cima, não havia teto. Como se estivesse olhando para um poço invertido, as escadas subiam à escuridão, orbitando um vazio central, ocultadas pela umbra antes de terminarem. Era uma visão assustadora.
Acima do primeiro lance de escadas as paredes de pedra eram substituídas por estantes intermináveis com pergaminhos e tomos, assim como gigantescas pinturas e tapeçarias.
Conforme subiam, o menino ficava cada vez mais maravilhado. Poderia viver ali dissecando os textos durante as eternidades, até que seus dias terminem e seus ossos se tornem mais um artefato da coleção. Mas não agora, pois parecia que nenhum daqueles itens despertava o mínimo interesse da menina, ela nem sequer esquadrinhava as paredes à procura de nada, o que levantou dúvidas acerca de quê a jovem queria lhe mostrar.
"Está cansado?", ela perguntou após para e virar para trás.
"Na verdade não. Você veio me mostrar algo da biblioteca?", disse.
"Ótimo, porque nós temos que subir até o topo. E não, não é aqui.", respondeu, e em seguida dispararam escadarias acima.
As escadas em si eram largas o suficiente para quatro pessoas andarem lado a lado, mas não possuíam guarda corpo. Foram desenhadas de acordo com o que arquitetos chamam de "em balanço", pois tratavam-se de blocos sólidos de mármore despontando das paredes, sem suporte inferior. Entretanto, esse termo não é muito adequado, haja vista o sentimento de instabilidade e insegurança que ele transmite.
Apesar de insegurança ser exatamente a característica principal daquelas escadas, ninguém gosta de ser lembrado disso.
Subiram lances e lances.
Mais um lance.
Mais um lance.
Os quadros eventuais das paredes pareciam julgá-los.
Eventualmente terminou a ascensão em uma porta de alçapão no teto que enfim dera as caras. Estava trancada com um grande cadeado.
"Chegamos", disse ela, animada.
Em seguida puxou um molho de chaves do manto, removeu a trava, empurrou a portinhola e subiu, estendendo a mão para que o colega subisse.
No sótão da torre, via-se respingos de tinta pelas paredes e pelo chão. Pinturas jaziam descuidadamente espalhadas por todo lado, mas estas eram diferentes. Ao passo que tanto no mercado quanto na biblioteca os quadros retratavam nobres, abundância e paisagens, estes retratavam o horror.
Eram imagens fortes, pesadas. Rostos destorcidos em gritos, costelas à mostra e braços finos como galhos que pareciam prestes a partir. As cores escuras e muito contrastadas corroboravam com o ar de sofrimento.
Sob o olhar de diversas faces doloridas em oposição ao sorriso de sua criadora, ela se apresentou.
"Você queria saber quem eu sou, não é? Eu sou a Pintora, filha da Imperatriz. Seja bem vindo ao meu ateliê."
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O Ateliê de Rascunhos
Mystery / ThrillerCentral ao nada, onde a noite cerra, Fica o eterno Ateliê de Rascunhos, Alheio ao tempo, alheio à terra. Lá jaz Ela e, de seu próprio punho, Pinta a arte, pinta os mundos, e pinta a guerra. _____________________________________ Um menino acorda sem...