1- O despertar

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Houve um tempo em que o destino dos homens caminhava lado a lado com as forças além da compreensão dos mortais, quando o sopro dos supostos deuses e o sussurro da magia moldavam o mundo. Mas, como toda história antiga, esses tempos foram perdidos no passado, enterrados sob o peso dos anos e da civilização que se erguia sobre os ombros dos esquecidos. Astaris, uma das grandes cidades cercada por muralhas de pedra, nasceu do desejo de controle, de proteger o que restava das trevas que uma vez dominaram a terra. E, no entanto, sob suas ruas pavimentadas e suas torres imponentes, algo adormecido aguardava o momento de ressurgir.

Os dias em Astaris eram sempre previsíveis, uma rotina imutável que parecia se repetir eternamente. Toda manhã, antes da luz pálida das pedras mágicas iluminar nosso pequeno apartamento, já estava desperto, o silêncio da casa sendo o único som além das batidas lentas do meu coração. O cheiro de pão tostado e chá quente já flutuava pela cozinha quando descia as escadas. Meus pais sempre estavam lá, como parte de um cenário familiar e inabalável, a única constante em um mundo que parecia girar sem rumo.

Na mesa, meu pai, de rosto sério e cansado, lia o jornal como fazia todos os dias, o papel amarelado tremendo levemente em suas mãos calejadas. Cada manchete parecia trazer mais uma notícia de conflito e destruição. "Os elfos e os anões estão em guerra de novo... Isso vai acabar com a paz da cidade", murmurava, as palavras carregadas de um desânimo que eu sentia profundamente. Minha mãe, como sempre, apenas assentia com um sorriso paciente, me passando uma xícara de café, tentando manter a normalidade. A tranquilidade deles, no entanto, só acentuava o contraste com a inquietação que me consumia por dentro.

O café da manhã seguia o mesmo ritual. Poucas palavras eram trocadas enquanto o jornal narrava o caos do mundo lá fora. O calor da bebida aliviava temporariamente o peso que pressionava minha mente, as dores de cabeça que se tornavam mais frequentes. Nessas dores, o martelar constante no fundo do meu crânio às vezes se tornava insuportável. Mas o mais perturbador não era a dor física. Era o que vinha com ela. Vozes – murmúrios que não eram meus – sussurravam como ecos distantes, fragmentos de pensamentos que eu não conseguia entender completamente. Às vezes, eram apenas ruídos dispersos, outras vezes, palavras claras o suficiente para me confundir, como se o mundo ao meu redor estivesse se intrometendo na minha mente.

Trabalhar em Astaris era apenas mais uma engrenagem dessa vida mecânica. Passava horas revisando documentos, entregando pacotes, sempre caminhando por ruas cheias de gente, mas sem ver nenhum rosto, sem sentir nada além da repetição do cotidiano. Algumas vezes, colegas do trabalho me convidavam para sair, beber, tentar esquecer as dores diárias, mas quase sempre recusava. Às vezes era a falta de dinheiro, outras vezes o cansaço mental, ou simplesmente a falta de ânimo para encarar a vida lá fora após um dia longo. Além disso, havia sempre o pensamento de que teria que acordar cedo no dia seguinte, o que por si só já era desanimador.

No entanto, a única parte do meu trabalho que me trazia algum prazer. De vez em quando, era designado para levar pacotes ao salão dos aventureiros. Aquele lugar era diferente de tudo que eu conhecia. Assim que atravessava as grandes portas, o ar mudava. O salão era uma mistura de caos e ordem, com guerreiros, magos e arqueiros de todas as raças e tamanhos. Orcs enormes, elfos ágeis, anões robustos, e até algumas figuras mais raras, como draconianos e seres elementais, moviam-se pelo salão com uma confiança inabalável. Era um ponto de encontro para heróis que saíam e voltavam com histórias de terras distantes, de monstros e tesouros que eu só poderia sonhar.

Observar aquele mundo, mesmo que de longe, sempre acendia uma fagulha dentro de mim. Desde criança, sonhava em ser um aventureiro, em explorar as terras além dos muros de Astaris, desbravar o desconhecido, descobrir segredos antigos e enfrentar desafios épicos. Mas esse sonho, tão vibrante na minha mente, nunca se concretizou. Não tinha habilidades mágicas, nem o talento com armas que aqueles aventureiros exibiam com tanta facilidade. Faltavam-me os poderes que os tornavam únicos, e, sem isso, ser um aventureiro nunca passou de uma ilusão distante.

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