16- Criatura

32 11 2
                                    

Vendo Zathor naquele estado, tudo pareceu desacelerar. O medo que antes tentava esconder cresceu, se tornando quase sufocante. Minha mente, um misto de desespero e instinto de sobrevivência, trouxe à tona a lembrança do espólio da batalha anterior. O anel. O artefato que eu havia tomado do xamã.

Minha mão, agora trêmula, deslizou lentamente até o bolso. Toquei o metal frio do anel, sentindo o peso de sua energia desconhecida. Sabia que ele não oferecia invisibilidade, mas poderia ocultar minha presença, permitindo-me mover-me entre as sombras como uma figura indetectável. Ao colocar o anel no dedo, senti um arrepio frio correr pela minha espinha, e o mundo ao meu redor pareceu se alterar. Minha presença desapareceu do campo de percepção do hobgoblin, mas eu ainda estava ali, visível para quem conseguisse me encontrar.

Comecei a me mover lentamente, focado na única forma de atacar: invadir sua mente. Meus poderes psíquicos estavam pulsando, como uma fera enjaulada, pronta para escapar. Mas eu sabia que usar viria com um preço. Pois teria usar com força total porém o preço era alto. A dor na minha cabeça, que começara como uma pressão suave, logo explodiu em uma tormenta de agonia.

Era como se minha mente estivesse sendo rasgada de dentro para fora. Eu não podia mais pensar claramente. Tudo o que existia era dor. Caí no chão, meu corpo se contorcendo de forma involuntária, os músculos se enrijecendo enquanto meu crânio parecia prestes a explodir. Babava enquanto tentava gritar, mas nenhum som saía. A visão ficou turva, por um momento, senti o hobgoblin. Senti sua presença, seus pensamentos, sua raiva profunda e sua sede de destruição. Eu estava lá, dentro da mente dele, mas não por muito tempo.

Zathor percebeu a brecha.  Viu o momento em que a conexão foi estabelecida, quando o hobgoblin vacilou por uma fração de segundo, não hesitou. Com um movimento rápido, ele desapareceu do local e, quando reapareceu, sua lança cortava o ar. O som do metal perfurando carne foi abafado pela risada grotesca do hobgoblin. O golpe havia acertado seu flanco, rasgando sua pele vermelha e brilhante, mas ele mal sentiu. Com um movimento lento, quase despreocupado, o hobgoblin murmurou algo em uma língua antiga, uma língua que fazia o ar ao nosso redor vibrar com uma energia sombria.

Do chão encharcado de sangue, as poças começaram a se mover. As manchas carmesins começaram a se moldar em formas grotescas, criando criaturas vivas feitas inteiramente de sangue coagulado. Criaturas de pura maldade e escuridão, suas formas pulsando enquanto surgiam ao redor de Zathor e Ariendel. Os olhos de Ariendel se arregalaram em choque. Ela nunca tinha visto algo assim. Era como se o sangue dos mortos tivesse sido trazido de volta à vida, moldado por uma magia profana.

Enquanto isso, eu ainda estava no chão, lutando para recuperar o controle. A dor de cabeça era indescritível. Cada pulsar do meu coração parecia aumentar o tormento, como se minha mente estivesse prestes a colapsar. As vozes na minha cabeça, ecos do passado, começaram a voltar. Visões dos experimentos de Draco surgiram em minha mente, tão vívidas e reais que me senti transportado de volta para aquela sala fria e estéril, preso em sua mesa de pedra, com agulhas perfurando minha pele. A dor era quase insuportável, e minha mente não conseguia mais distinguir o que era real e o que era memória.

Ariendel gritava por mim. Sua voz, carregada de desespero, cortava o ar. "Isaac! Volte! Precisamos de você!" Mas sua voz soava distante, como se viesse de um mundo diferente. Eu estava perdido nas minhas próprias memórias, preso em um pesadelo de dor e sofrimento, incapaz de distinguir o presente. As imagens dos experimentos me sufocavam: o toque frio das agulhas, as lâminas cortando minha carne, o olhar impassível de Draco observando enquanto eu me retorcia de dor. Eu me via pequeno, impotente, uma marionete nas mãos de algo maior.

Enquanto a dor crescia, algo dentro de mim começou a mudar. Senti minhas mãos começarem a se contorcer, como se a própria carne estivesse se deformando. Minha pele começou a endurecer, coberta por escamas verdes e roxas que brilhavam à luz pálida da caverna. Meus ossos começaram a estalar, crescendo e se expandindo. Eu estava me tornando algo mais, algo monstruoso. Dentes afiados emergiram onde antes havia meus caninos humanos, e uma fumaça quente e densa escapava das minhas narinas. Meus olhos se aguçaram, enxergando o mundo com uma precisão sobre-humana, captando cada detalhe, cada movimento das criaturas de sangue, cada sombra na caverna.

Eu podia ver Zathor lutando bravamente, sua lança girando no ar, cortando as criaturas, mas elas continuavam surgindo. Ariendel, com o rosto coberto de suor e dor, usava sua magia para manipular o solo, erguendo rochas e esmagando os goblins, mas estava claramente exausta. E eu estava lá, no chão, mas também longe, observando meu corpo se transformar. Era como se eu fosse um espectador, vendo minha carne crescer, meus músculos se expandirem, até que eu estava dobrado de tamanho, uma mistura grotesca de humano e dragão.

Todos pararam por um momento para me observar. O hobgoblin olhou para mim com desprezo, mas havia algo mais em seus olhos, algo que não consegui decifrar. Zathor, ferido e ofegante, me observava, sem palavras. E Ariendel, no meio da batalha, com os braços levantados enquanto rochas flutuavam ao seu redor, tinha um misto de choque e medo no olhar.

Eu não estava no controle. Me via de longe, sentia meu corpo se mover, mas era como se estivesse assistindo a tudo acontecer. A dor dos experimentos de Draco ainda queimava em minha mente, confundindo minha percepção. Minha mente gritava para parar, mas meu corpo não ouvia. Eu era uma criatura agora, uma mistura de dragão e humano, com dentes afiados como lâminas, músculos que pulsavam com poder, e escamas que reluziam à luz da caverna.

O hobgoblin começou a murmurar mais encantamentos, criando novas criaturas de sangue, ainda mais fortes e maiores do que antes. Ariendel gritou novamente, tentando chamar minha atenção, mas eu não conseguia responder. Estava perdido, consumido pela transformação.

E então, algo dentro de mim finalmente explodiu. Um grito selvagem e primal saiu da minha garganta, um som que ecoou pelas profundezas da caverna, como o rugido de uma fera ancestral. A energia psíquica que eu havia liberado antes começou a se reorganizar, concentrando-se em algo mais coeso, mais mortal. Eu não sabia como ou por que, mas uma coisa era certa: o que eu me tornara poderia ser a nossa única chance de sobreviver àquela batalha.

O vazio primordial Onde histórias criam vida. Descubra agora