6- A dança da noite

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A escuridão da floresta parecia engolir o mundo ao nosso redor, uma vastidão silenciosa que se estendia como um véu impenetrável. As árvores altas e retorcidas formavam colunas negras, mergulhadas em sombras tão densas que a luz da lua mal conseguia atravessá-las. O único som que quebrava o silêncio absoluto era o crepitar suave da fogueira que Zathor e eu havíamos acendido. As chamas subiam e dançavam como espíritos inquietos, lançando sombras vacilantes nas copas das árvores, e o calor que elas emitiam era a única barreira contra o frio úmido que se infiltrava em nossos ossos.

O acampamento que montamos parecia minúsculo sob o peso da floresta ao redor, como se estivéssemos cercados por uma entidade viva, observadora, que poderia decidir nos devorar a qualquer momento. O ar estava saturado de um cheiro pungente de terra molhada e folhas em decomposição, um lembrete constante de que estávamos longe de qualquer segurança.

Zathor, com sua experiência em incontáveis batalhas, se movia com uma precisão quase mecânica enquanto preparava o acampamento. Sua figura grotesca era iluminada pela luz oscilante da fogueira, e suas cicatrizes, profundas e irregulares, ganhavam vida à medida que as sombras dançavam em sua pele. Cada marca em seu corpo era um testemunho silencioso de lutas passadas, histórias que se entrelaçavam em uma tapeçaria de dor, violência e sobrevivência.

Enquanto o observava, meu pensamento vagava, inevitavelmente, para o tempo em que estive preso na torre de Draco. O frio daquela floresta não era nada comparado ao vazio sufocante que eu sentia nas noites em que a depressão me dominava, como uma corrente invisível que apertava meu peito. As batalhas, os corpos que caíam diante de mim semana após semana, eram cicatrizes na minha alma, cada morte era um lembrete amargo daquilo que eu estava me tornando. Às vezes, eu sentia que estava afundando mais, perdendo cada vez mais o controle sobre quem eu era.

Eu pensava nos dias em que me sentia paralisado pela ansiedade, sem conseguir mover um músculo, como se o peso do mundo estivesse me esmagando. Na torre, a violência parecia inevitável, um ciclo sem fim, mas agora, aqui na floresta, eu me perguntava se estava fadado a me transformar no monstro que Draco queria que eu fosse.

Essas memórias me fizeram olhar novamente para Zathor. Suas cicatrizes não eram apenas marcas de batalha. Havia algo mais profundo ali, algo que ele evitava falar. E, ao me lembrar de minha própria dor, da minha própria queda, senti que, de alguma forma, essa conexão podia ser o que o faria abrir-se.

"Às vezes, a escuridão que nos persegue não vem de fora," comecei a dizer, minha voz saindo baixa, carregada com o peso daquelas lembranças. "Aqueles dias na torre... eu podia sentir algo dentro de mim se quebrando. A ansiedade, o medo de não ser capaz de controlar o que eu estava me tornando... me consumia. Era como se a cada morte, a cada batalha, eu estivesse perdendo uma parte de mim."

Zathor permaneceu em silêncio, mas seus olhos se voltaram para mim, avaliando minhas palavras com uma intensidade perturbadora. Havia algo em seu olhar, um eco da minha própria dor. Eu sabia que ele compreendia, talvez mais do que ninguém.

"O que te trouxe aqui?" perguntei, deixando a pergunta pairar no ar. Sabia que ele relutava em falar sobre seu passado, mas algo me dizia que ele estava perto de ceder.

Por um longo momento, Zathor não respondeu. Seus olhos se perderam na escuridão ao nosso redor, como se estivesse buscando algo que só ele podia ver. Quando finalmente falou, sua voz estava rouca, carregada de uma dor antiga. "Minha história não é para os fracos de coração, Isaac. E, mesmo assim, às vezes, me pergunto se compartilhar isso é uma maldição. As memórias... elas têm vida própria. Quando as deixamos sair, voltam com uma fome, uma vontade de nos devorar."

Ele suspirou, as cicatrizes em seu rosto parecendo pulsar à luz instável da fogueira. "Eu não era sempre... isso." Ele gesticulou para o próprio corpo, como se fosse uma criatura alheia a si mesmo. "Nasci humano, como qualquer outro. Mas nas profundezas de um império esquecido, fui capturado por uma ordem antiga. Magos, necromantes... Eles procuravam almas para seus rituais, corpos para deformar e transformar."

A história que se desenrolava diante de mim era mais sombria do que qualquer coisa que eu poderia ter imaginado. Zathor hesitou por um instante, mas parecia ter decidido que, já que começara, não havia mais como voltar atrás.

"Fomos arrancados de nossas vidas. Crianças, adultos... não importava. Fomos acorrentados, jogados em salas escuras e úmidas, enquanto eles realizavam rituais que corrompiam nossos corpos e mentes. Eu fui amarrado em uma mesa de pedra, enquanto aqueles necromantes entalhavam símbolos antigos na minha pele. As runas queimavam como fogo. O cheiro da carne sendo queimada nunca me deixou."

Meu estômago se revirava enquanto Zathor falava. Havia uma intensidade aterradora em suas palavras, uma dor tão profunda que quase se tornava palpável. Mas ele não parou. Ele precisava continuar.

"Eles quebraram meus ossos, os deformaram e me reconstruíram, pedaço por pedaço. Mas a dor física era apenas o começo. O verdadeiro horror era o que faziam com nossas mentes. Eles nos transformaram em algo... menos que humano. Eu perdi minha alma naquela mesa, Isaac. Vi meus amigos serem devorados pelo terror, transformados em monstros sem vontade própria. Mas eu sobrevivi... eu escapei. E agora carrego essas marcas, não só no corpo, mas na alma."

O silêncio que se seguiu foi denso, sufocante. Cada palavra que ele dissera parecia pairar no ar entre nós, como um peso invisível, mas esmagador. Eu me lembrava dos dias na torre, das batalhas forçadas, do que eu havia me tornado. As palavras de Zathor ecoavam dentro de mim de forma inquietante.

"Somos criaturas das sombras," murmurei, quase sem pensar. "E às vezes, nos acostumamos tanto à escuridão que esquecemos como é viver sob a luz."

Zathor me olhou, e algo em seu olhar me fez perceber que ele sabia. Ele sabia o que era ser consumido pela escuridão, assim como eu sabia. Talvez, naquele momento, eu tivesse mais em comum com ele do que jamais imaginara.

Antes que pudesse processar o que estava acontecendo, uma onda de murmúrios invadiu minha mente. Eu fechei os olhos, deixando meus sentidos psíquicos se expandirem, sentindo a presença de outras mentes ao nosso redor. Elfos. Eles estavam escondidos nas sombras da floresta, nos cercando lentamente, prontos para atacar. Mas seus pensamentos os traíam, e eu podia ouvi-los.

Sem dizer uma palavra, fiz um gesto para Zathor. Ele compreendeu de imediato, pegando sua lança e ficando alerta. Deixei meu poder psíquico fluir, buscando uma mente mais fraca entre os elfos. Encontrei um. Ele estava hesitante, o medo dominando seus pensamentos. Um alvo perfeito. Entrei em sua mente, distorcendo suas percepções, plantando a ideia de que seus companheiros o haviam traído.

O elfo disparou uma flecha em um de seus próprios aliados, e o caos se instalou. Zathor não perdeu tempo; ele avançou com a precisão de um predador, perfurando o traidor com sua lança, o som abafado de carne e osso sendo atravessados ecoando pela clareira. O corpo caiu no chão, sem vida, mas os outros elfos rapidamente se lançaram sobre nós.

Me concentrei, mergulhando nas mentes de três elfos ao mesmo tempo. Para o primeiro, apaguei sua memória de como andar. Ele caiu de joelhos, incapaz de se mover. Para o segundo, criei uma ilusão de uma criatura horrenda atacando-o, e ele começou a golpear o ar em pânico, gritando. O terceiro resistiu, mas eu estava pronto. Usei meu poder para distorcer sua percepção do tempo, fazendo-o ver o mundo em câmera lenta. Ele avançou em minha direção, mas eu desviei de suas lâminas com facilidade, enquanto atacava sua mente com uma dor excruciante. Ele gritou, cambaleando para trás, e eu aproveitei a oportunidade. Minha adaga encontrou sua garganta, e ele caiu, sufocando no próprio sangue.

Zathor, por sua vez, era uma máquina de destruição. Sua lança se movia com precisão letal, perfurando elfos com uma fúria primitiva. Cada golpe era final, cada movimento, mortal. Ele esmagou a cabeça de um elfo contra uma árvore, partiu o pescoço de outro com as próprias mãos, e o sangue jorrava ao seu redor como uma chuva macabra. O campo de batalha, que antes era um refúgio tranquilo, agora estava manchado de sangue e coberto pelos corpos mutilados dos Elfos. O silêncio voltou, pesado, interrompido apenas por nossa respiração ofegante.

Olhei para Zathor, e o que vi em seus olhos me perturbou. Havia algo ali, algo sombrio que refletia  o que eu estava começando a sentir dentro de mim. A cada morte, eu sentia menos culpa, menos remorso. O gosto pelo sangue, pelo controle sobre as mentes alheias, estava crescendo, e eu sabia que era apenas uma questão de tempo até que isso consumisse por completo.

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