17- Espectador

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Flutuando em minha forma espectral, eu era uma mera testemunha, afastado de meu corpo, observando de longe o cenário de destruição que eu mesmo havia causado. A dor que antes me dilacerava havia sumido no exato momento em que o grito do monstro ecoou pela paisagem morta. Agora, o que restava era um silêncio perturbador, quebrado apenas pelo som do veneno escorrendo pelo chão, envenenando o solo.

A névoa venenosa que envolvia meu corpo pulsava com uma energia maligna, emanando um poder bruto e incontrolável. Eu assistia, impotente, enquanto minhas mãos — ou, melhor dizendo, as mãos que antes eram minhas — se moviam com uma precisão mortal, como uma marionete presa em fios invisíveis. Cada gesto parecia calculado, desenhado por uma mente fria e implacável. No entanto, a verdade era mais perturbadora: eu sabia que não era eu quem controlava aqueles movimentos. Algo maior, mais sombrio, havia tomado as rédeas.

Meu corpo deslocava-se com uma rapidez sobre-humana, tão veloz que o próprio mundo ao meu redor se distorcia em borrões de luz e sombra. Em um piscar de olhos, eu estava diante das criaturas de sangue, seres que pareciam desafiar a própria natureza com suas existências deturpadas. O veneno que emanava de minha boca era uma fumaça densa e viscosa, tingida de um verde doentio, que flutuava no ar como um manto da morte. Ao menor toque dessa fumaça, o efeito era instantâneo.

O sangue das criaturas, antes vibrante e pulsante, começou a se transformar. Primeiro, adquiriu uma tonalidade vermelha escura, quase como vinho, mas logo tornou-se negro, uma substância oleosa e corrompida. Em questão de segundos, seus corpos começaram a se desfazer, derretendo como cera diante de uma chama impiedosa. O solo, ao receber os restos dessas criaturas, corroía-se rapidamente, apodrecendo sob o toque do veneno. O fedor era insuportável, uma mistura de ácido e morte, como se a própria terra estivesse morrendo junto com aquelas abominações.

Eu sentia tudo isso de longe, como se meu espírito estivesse preso em um limbo, incapaz de interferir. Mas então algo mudou. Uma nova presença, mais poderosa e ameaçadora, se manifestou. Meu corpo, movido por uma força invisível, se voltou para o hobgoblin. Ele era diferente dos outros, um comandante do caos, cuja presença exalava uma aura de malícia.

Ele ergueu a mão, traçando rapidamente runas no ar, preparando-se para lançar um feitiço. Mas antes que pudesse completar a conjuração, meu corpo, agora uma máquina de destruição, já estava ao seu lado. A velocidade com que me movi era surreal, como se eu tivesse me materializado do nada. Com um único golpe brutal, arranquei seu braço. O som foi grotesco, um misto de carne sendo rasgada e ossos sendo partidos como galhos secos. O grito que se seguiu foi ainda mais aterrorizante. O hobgoblin se contorceu, segurando desesperadamente o coto onde antes havia um braço, enquanto um sangue negro e espesso escorria por seus dedos. Sua dor era palpável, quase uma entidade própria, mas ele não teve tempo de reagir.

Foi então que ele desencadeou sua última cartada. Uma explosão de energia negra emanou de seu corpo, me lançando para trás com uma força avassaladora. Não era apenas uma onda de poder físico. Havia algo de sobrenatural naquela explosão, algo que me atingiu profundamente, não apenas no corpo, mas na alma. A névoa venenosa ao meu redor vacilou, quase se dissipando por um momento. Eu senti a presença daquele poder antigo e maligno como uma mão invisível e pesada que tentava me arrastar para o abismo.

O hobgoblin, aproveitando a pequena vantagem que conquistou, começou a traçar runas no ar com o sangue que ainda jorrava do coto de seu braço. As runas brilhavam com um vermelho incandescente, como cicatrizes abertas no próprio tecido da realidade. Elas flutuavam diante dele, irradiando uma energia sinistra e avassaladora. O ar ao redor se distorceu, e, num instante, um portal se abriu, rasgando o espaço entre mundos.

O vórtice diante de nós era uma fenda entre a realidade e algo além. A mistura de sombras e luz púrpura oscilava, vibrando com uma instabilidade perigosa. O ambiente ao redor parecia vibrar também, como se a própria natureza estivesse sendo forçada a ceder ao poder do portal. Do outro lado, eu vi algo que fez o medo gelar minha espinha: o lobo. O mesmo lobo que nos atacara na floresta, suas garras afiadas e seus olhos famintos, agora esperava pacientemente do outro lado da fenda, como se estivesse apenas aguardando o sinal para saltar para a batalha.

O hobgoblin lançou-me um olhar cheio de ódio e amargura antes de se atirar no portal. Eu queria persegui-lo, queria impedi-lo de escapar, mas algo dentro de mim finalmente se partiu. O controle que a força sombria tinha sobre meu corpo vacilou. Senti, pela primeira vez, que a presença que me controlava estava cedendo, e então, como se as correntes invisíveis que me prendiam fossem rompidas, eu fui liberado.

A névoa venenosa ao meu redor começou a se dispersar. O poder esmagador que antes me preenchia como uma tempestade implacável estava desaparecendo, lentamente, como a última chama de uma vela prestes a se apagar. Meu corpo, antes leve e ágil, agora parecia pesado como chumbo. Senti meus joelhos cederem, minhas pernas tremerem sob o peso da exaustão que finalmente me alcançava. A sensação de invencibilidade havia sumido, substituída por um vazio paralisante.

Minha visão começou a se desfazer, como se estivesse sendo puxado para dentro de um túnel de sombras. O cheiro de podridão ainda impregnava o ar, mas minha mente não conseguia mais processar os detalhes ao meu redor. Eu estava à beira do colapso. Tentei dar um passo à frente, talvez em uma tentativa inútil de lutar contra o inevitável, mas meu corpo recusou-se a obedecer.

A força corrosiva do veneno, que antes parecia ser uma extensão do meu próprio ser, recuava lentamente para as profundezas de minha alma, como uma fera que voltava para sua caverna após a caçada. A fera estava saciada, e eu, esgotado.

Então, tudo ficou negro.

O impacto de meu corpo contra o solo ecoou pela paisagem desolada. A terra, corrompida pelo veneno que eu havia liberado, era fria e insuportavelmente áspera contra minha pele. E naquele instante final, enquanto o vazio me envolvia, senti a última fagulha de consciência se apagar. Eu havia sido consumido pela batalha, e agora, a escuridão era meu único companheiro.

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