O meio-fio

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💙🚬

Dizem que a gente herda os traços de quem nos cria e eu nunca entendi o que isso significa. Na verdade, eu acredito que a gente herda percepções e viramos o produto do que gostaríamos de ser, do que podemos ser e do que somos de fato.

Eu tenho uma percepção de família diferente do que as pessoas consideram o normal ou tradicional. Não fomos felizes, não nos apoiamos acima de qualquer coisa, no final do dia não fica tudo bem e temos uns aos outros. No final do dia meu pai tinha ido embora e a minha mãe queria que eu nunca tivesse nascido.

A minha vida sempre foi barulhenta demais, com tons quentes, emoções negativas latentes e ausência de quaisquer bons sentimentos genuínos. O que será que esperam que pessoas como eu sejam? Provavelmente o pior, mas eu realmente acredito que fiz o melhor com o que eu tinha. Era pouco, bem pouco mesmo, quase nada, mas era o suficiente pra não ser como eles.

Meu pai não era uma pessoa ruim, ele só não queria ser meu pai. Eu poderia ficar com raiva disso, nutrir algo ruim no meu coração, mas isso não mudaria os fatos e era tão cansativo. É cansativo andar com essa nuvem preta sobre mim o tempo todo, então se eu tenho a opção de deixá-la pelo menos cinza, eu faço sem nem pensar duas vezes. Nem sempre ficar triste ou feliz é algo que a gente faz como ligar ou desligar um interruptor, talvez seja por isso que com o tempo eu fui ficando cada vez mais apático. Os altos e baixos também cansam, principalmente quando você vive mais nos baixos. Então a apatia é mais segura e confortável, ainda que eu não tenha chegado nela de forma calculada e voluntária.

Como eu disse, eu sou só um produto de percepções. Mas alguma coisa lá no fundo ainda se esforçava pra que eu fosse bom, pra que eu fosse melhor e essa coisa me rendeu bons amigos, boas notas e boa educação acadêmica.

- Você é um merda igual a ele! Eu devia ter tirado você como eu queria, mas aquele imbecil me convenceu de que seríamos a porra de uma família feliz! Eu te odeio! Isso é tudo culpa sua! Você acabou com a minha vida!

Ela sempre faz isso: bebe , se odeia, odeia o meu pai, me odeia, quebra coisas, às vezes vomita e sempre dorme depois de tanto chorar pedindo clemência a algum Deus pela vida que ela diz ter sido arruinada. No dia seguinte ela finge que nada aconteceu, inclusive eu. É como se eu nunca tivesse nascido, pelo menos não da barriga dela. É como se eu e ela só coabitássemos o mesmo espaço.

Tudo isso começou mais cedo do que eu consigo me lembrar, então eu simplesmente aceitei essa condição. Eu sempre cresci com uma mãe que nunca quis ser minha mãe. Uma vida toda dedicada em ser o melhor em tudo pra mendigar o mínimo de qualquer demonstração de afeto ou satisfação. Qualquer uma. Por mais microscópica que fosse. Eu queria qualquer coisa, mas nunca veio e em algum momento eu só larguei de mão.

Pego o moletom, a carteira e o fone de ouvido e saio de casa sem destino definido. Eu só preciso respirar, dar uma volta, fingir que essa vida não é minha nem que seja por algumas horas. De capuz e máscara vou andando pelas ruas sentindo meus olhos queimarem. Isso já deveria ter parado de doer. Isso não deveria me afetar tanto toda vez. Acho que preciso de um cigarro ou um whisky ou os dois. Eu odeio beber quando eu estou na merda, mas é aquilo né... a maçã não cai longe da árvore.

Já era quase 1h da madrugada e eu ainda estava no primeiro terço da garrafa do whisky mais barato do posto de gasolina. Sentado no meio fio enquanto observava o pouco movimento da rua naquele horário, estava tudo deserto e silencioso. Eu ouvia meus pensamentos ensurdecedores quando uma voz me puxa de volta pra realidade.

- Tem isqueiro?

- Pega aí. - tiro do bolso do casaco e entrego ainda sem olhar pro dono da voz suave.

FOOLS [ JJK PJM ]Onde histórias criam vida. Descubra agora