Vivienne Barbieri
— Ei. Você tá legal? — Theodora balançou meu ombro, me tirando de um pesadelo onde Haziel invadia meu funeral como tinha feito com a homenagem de meu pai. Acordei desorientada, e tive que piscar repetidas vezes até me dar conta de onde estava. Eu tinha caído no sono no sofá na noite anterior, e havia uma garrafa de cachaça no chão ao meu lado. Minha boca estava seca como o maldito deserto do Saara.
— Oi. Tô sim — eu respondi roucamente, embora não fosse exatamente verdade.
— Besteira — Theodora acusou, cruzando os braços sobre o peito diante de mim. Ela já estava de uniforme e com as mochilas nas costas. Ainda não devia nem ser sete horas da manhã. — Você está falando durante o sono. Na verdade, tem falado enquanto dorme em todas as últimas três noites desde que voltei para o apartamento.
— São só palavras desconexas, Theodora. Não tem com o que se preocupar.
— Você diz "ele está vindo", Vivianne. Repetidas vezes nessas repetidas noites.
Merda.
— Quem? Quem está vindo? — ela insistiu, e eu bufei enquanto me sentava. Eu ainda sentia o gosto de cachaça na boca.
— Ninguém. São sonhos aleatórios, já disse — murmurei, esfregando os olhos. Eu ainda estava com sono, mas não queria voltar a dormir. Sabia que sonharia com ele outra vez. — Agora cuide um pouco mais de você e vai para a escola logo.
Theodora suspirou, nada contente.
— Pensei que iria ser diferente dessa vez. Pensei que íamos cuidar uma da outra.
Eu engoli em seco, encarando seus olhos magoados. Ela estava lembrando de nossa conversa na casa de Laura.
— Eu estou tentando bancar a irmã legal me preocupando com você, tá? — eu disse, repentinamente na defensiva.
— É, eu estou vendo que você está tentando mesmo. Mas... quem cuida de você, Vivienne? Quem?
— Eu já sou grandinha o suficiente para cuidar dos meus problemas sozinha.
A menina inspirou fundo, parecendo enfim desistir de mim, como se eu fosse uma causa perdida, mas não sem antes dizer:
— Todos precisam de alguém de vez em quando, sabe? Não importando a idade. É muito triste que você tenha sido tão traumatizada ao ponto de não se deixar admitir que precisa confiar em alguém em alguns momentos, Viv.
Quase duas horas mais tarde, eu decidi ir correr. Embora Gringo não tivesse aparecido para me treinar desde o dia do tiroteio, três dias atrás, eu ainda me mantinha surpreendentemente firme na preparação para o Ragnarok. Eu fizera uma promessa a mim mesma que venceria, no fim das contas. Eu a cumpriria.
Eu tinha acabado com os últimos suplementos protéicos que Gringo trouxera naquela manhã. Não sabia o que faria a seguir para cuidar de minha massa muscular, nada daquilo era barato, e as contas não paravam de chegar nunca. Contudo... eu daria um jeito. Eu tinha que dar.
O sol já estava quente quando comecei a caminhar pelas ruas planas do bairro, mas não me importei. Era boa a sensação do sol em minha pele. Eu até me sentia um pouco livre, para ser sincera, o que não acontecia muito. Infelizmente, a sensação foi passageira, ela nunca durava muito mesmo. Logo meus pensamentos se voltaram a três dias atrás, embora a música em meu fone estivesse no último volume a fim de evitar isso. Primeiro, inconvenientemente, lembrei-me de como tinha empurrado Haziel para longe das janelas que foram estilhaçadas por balas. Eu ainda não entendia o porquê, e me arrependia desse gesto instintivo mais do que tudo. Depois, as memórias do nosso beijo arrombaram a porta de meu inconsciente que eu me esforçava muito para manter trancada na maior parte do tempo. Ainda não sabia ao certo como Haziel fora capaz de me deixar tão fora de controle, de ter tanto poder sobre meu corpo. Aquilo não estava certo. Nada daquilo.
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Criaturas Brutais
RomansaVivienne Barbieri está enfrentando o Inferno. Jordan Barbieri, importante político de Belo Horizonte que a adotara aos dezesseis anos, falecera em uma operação que buscava encerrar atividades ilegais de rixas de comunidades. Com dívidas para cuidar...