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- Sobre o quê um homem deve ser julgado? Eu lhes pergunto, senhoras e senhores. Sobre suas escolhas, a maioria diria. Então, eu me pergunto e faço a mesma pergunta a vocês: se um homem deve ser julgado por suas escolhas; o que fazer quando ele não tem escolha?... Meu cliente, Ramiro, hoje é um homem... Mas, já foi um menino. Um menino que nunca aprendeu a ter escolhas. Assim como não havia aprendido a ler nem a escrever, até ter o apoio do companheiro, que lhe indicou retomar os estudos através da educação de jovens e adultos. E é aí que lhes questiono, senhoras e senhores: qual a palavra-chave dita aqui? Apoio.
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Ramiro estava sentado na beira da cama, pensativo, olhando para o nada como sempre, mas dessa vez um singelo sorriso aparecia em seus lábios. Ele lembrava das palavras do seu advogado, doutor Rodrigo, defendendo-o no seu julgamento.
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- Sem apoio, Ramiro ainda hoje saberia apenas escrever o próprio nome e só. E por que um homem adulto não tinha a educação básica? Porque, como muitos, infelizmente, lhe foi negado o direito a tal educação a partir do momento que ele foi jogado ao trabalho desde cedo, trabalho, este, muitas vezes perigoso para uma criança, muitas vezes em condições precárias, muitas vezes em condições que – e deixem-me dizer isso com muita dor pessoal – em condições análogas à escravidão. Portanto, sem apoio algum para crescer, estudar e evoluir seu pensamento crítico. E tal qual, o seu pagamento era corresponder ao patrão em troca de continuar vivo. E qualquer apoio que Ramiro poderia ter para vencer o obstáculo da sua falta de conhecimento e buscar seus direitos, no mínimo, o direito de ter escolhas, não existia. Jamais existiu.
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- Vamos, Rams, termina de se arrumar, temos que chegar cedo. – Kelvin lhe chamou a atenção interrompendo suas lembranças. – Vem, deixa eu ajeitar essa gravata. Tava aí olhando pra o nada pensando em quê, hein? Posso saber?
- Eu... Tava pensando n'ocê. – Ramiro respondeu arrancando um olhar e um sorriso maliciosos do marido.
- Hmm... E o senhor estava pensando em quê comigo exatamente?
- Êêê... Cê já pensou que era safadeza, né? Mai num é, não. Eu só tava me alembrando de um monte de coisa bonita que ocê já me ensinou. Quando ocê disse que eu podia aprender a ser o que eu quiser... Eu acho que eu tô conseguindo, né, pequetito?
Kelvin abriu outro tipo de sorriso, agora cheio de orgulho. – Você tá, sim. Pode sentir orgulho de você tanto quanto eu sinto. Eu te amo.
- Também te amo. – Sussurrou puxando Kelvin para um beijo suave.
O menor riu ao soltarem-se do beijo, brincando: - Agora deixa eu dar o nó nessa gravata que você não vai se livrar de usá-la hoje.
Ramiro fez cara de desagrado. – Precisa disso tudo memo, Kevín? Num gosto de gravata! Eu posso escolher num ir assim todo chique?
Kelvin riu e puxou o marido pela gravata recém colocada para um beijinho. – Hmm... Não, você vai assim, sim. Não tem escolha. Não deixo. – Argumentou dengoso fazendo Ramiro rir também.
- Êê... Quer saber, pequetito? Quando é ocê que manda, eu até gosto de num ter escolha.
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- Muitos de vocês devem pensar que todos nós, sem exceção, podemos escolher fazer ou não fazer algo, obedecer ou não. Contudo, nem sempre isso é verdade. Há pessoas que a única opção é sobreviver. ... Ramiro, senhoras e senhores, é um sobrevivente. Vejam que nem eu nem meu cliente negamos o fato de ele ter cometido alguns crimes e sido testemunha de outros. Mas, fato é: se ele não obedecesse às ordens dos patrões para cometer tais crimes, ele é quem seria a próxima vítima. Tanto é que na primeira vez que desobedeceu, o mesmo patrão, ao qual Ramiro passou a vida respeitando e, mais ainda, temendo, mandou que outros capangas o espancassem com toda violência e o deixassem abandonado numa estrada para ser atropelado. ... Agora, digam: onde estão os verdadeiros criminosos? Os mandantes de tais crimes? Eu lhes digo, senhoras e senhores: eles estão livres. Sim, estou falando da família La Selva que sempre foi omissa quanto a retirada de direitos que seus empregados, sobretudo, Ramiro Neves, sofria. Sim, estou falando, sobretudo, de Antônio La Selva e Irene La Selva, ex-patrões do meu cliente, um morto e uma foragida da justiça. Foragida esta que é uma assassina. E é dela que parte a comparação necessária que farei: Irene La Selva, dama da sociedade, tinha tudo, inclusive o bem mais valioso: educação. E escolheu o crime. Agora, Ramiro... Tirado de sua infância para o trabalho abusivo, com um patrão que lhe tirou os livros e lhe entregou armas, com a escola La Selva que lhe ensinou a eliminar seus inimigos... Como ele poderia ter outra escolha se sequer sabia que existiam escolhas para ele? Ramiro cresceu cheio de traumas, rodeado pela violência, maus-tratos, abandono, solidão. Como o próprio já disse em depoimento anterior, ele nunca quis matar ninguém. Pois, se ele quisesse, seria sua escolha. Mas, não era, nunca foi. Eram ordens! Ordens daquele que ele mesmo acabou por eliminar por ameaçar a vida de quem lhe ensinou a ter o direito à vida e à dignidade. Volto a apontar-lhes Kelvin Santana. Que hoje carrega no pescoço a cicatriz do ferimento que poderia ter sido fatal. Uma facada dada pelo falecido Antônio La Selva, segundos antes de Ramiro atirar nele a fim de defender o namorado. Pergunto-lhes, senhoras e senhores, quantos de vocês não fariam algo semelhante se disso dependesse a vida de quem amam?
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Liberdade e Paixão
FanfictionE depois que Ramiro saiu da prisão? Ele era outro homem. Completamente mudado como Kelvin havia dito em seus votos de casamento. Bom, talvez não completamente, porque um pedacinho de Ramiro não mudou. Este pedacinho já era de Kelvin desde a primeira...