Souls

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Orm sempre soube que era diferente, mas, entre os humanos, ela conseguia ser apenas mais uma. Seu pai, em sua infinita sabedoria, havia permitido que ela vivesse na Terra como qualquer mortal, experimentando a vida com suas imperfeições e pequenos milagres cotidianos. Ela gostava dessa liberdade, da rotina que levava, longe do peso de sua verdadeira identidade.

Era uma manhã como qualquer outra. O sol mal havia nascido, e ela ainda estava enroscada nos lençóis quando sentiu aquele arrepio familiar percorrer sua espinha. Não era frio, nem medo... era Ele. Seu pai. Sempre soube quando Ele se aproximava, mesmo que não houvesse nenhuma manifestação física.
Ela se espreguiçou lentamente, os músculos ainda pesados de um sono interrompido, e, caminhou até a janela, observando a movimentação lá embaixo. A vista era ao mesmo tempo bela e caótica, um mar de prédios e ruas que pulsam com a vida dos humanos. Pessoas apressadas cruzavam as calçadas, cada uma imersa em seus próprios mundos, enquanto carros buzinavam nas ruas. Para elas, era um dia comum, mas para Orm, tudo isso era um espetáculo de cores e sons, uma sinfonia que a lembrava de como era difícil se misturar àquelas vidas. No meio dos humanos, sempre soube se disfarçar, adaptando-se e moldando-se à sua volta. No entanto, não importava quantas máscaras ela colocasse, seu pai sempre a encontrava.

A pressão de ser filha dele era um fardo a carregar. Não era apenas o peso do legado que a incomodava, mas a sensação constante de estar sendo vigiada, como se um olhar invisível a seguisse a cada passo. O que seria dela se todos soubessem quem realmente era? O que seria de sua liberdade?

Suspirou, os olhos ainda fixos na cidade, desejando que a vida pudesse ser simples como a de qualquer humano. Mas a verdade era que cada passo que dava na Terra, cada respiração, era uma dança delicada entre o que era e o que deveria ser. E, com cada movimento, Orm sentia a sombra de seu pai pairar sobre ela, ameaçando desvelar o que ela tentava esconder.

O dia ainda estava em sua infância, e enquanto o sol começava a brilhar, a presença Dele preenchia o quarto como uma brisa suave, mas inconfundível.

  -Orm...- A voz calma, carregava uma gravidade que fazia o coração dela acelerar. -Preciso falar com você.

Fechou os olhos, permitindo que a mensagem penetrasse completamente. O que poderia ser tão importante a ponto de interromper seu dia? Suspirando profundamente, Orm se afastou da janela, seu reflexo na superfície de vidro se desfazendo enquanto ela se preparava.

Diante de uma variedade de roupas, ela escolheu seu vestido branco simples que flutuava suavemente ao seu redor. Para ela, não importava se estava vestida de maneira angelical ou não; o que realmente contava era como se sentia por dentro. Vestir-se assim sempre fora uma escolha, uma expressão de quem ela era, mas nunca foi algo que a definisse.

Orm dirigiu-se à cozinha, onde o aroma do café fresco a acolheu. Assuntos do céu podiam esperar, sua fome não.
Preparou duas torradas, cada fatia estalando no torrador enquanto o café passava. Quando tudo ficou pronto, despejou o café em um copo térmico, garantindo que pudesse aproveitar cada gole, mesmo enquanto se movia rapidamente entre os mundos.

Com tudo pronto, a loira fechou os olhos e se concentrou. Uma luz dourada começou a emanar ao seu redor, crescendo em intensidade até que tudo se desfez em um brilho ofuscante.

No instante seguinte, ela se viu no grande salão de Celestia, onde o céu se estendia em um azul profundo, e os edifícios de cristal brilhavam ao sol. A beleza do lugar era inegável, mas a ansiedade a acompanhava enquanto caminhava em direção ao seu pai, o ambiente ali sempre a fazia se sentir pequena, não pela grandiosidade, mas pela serenidade quase esmagadora.

Ela deu uma mordida em sua torrada, se permitindo desfrutar do simples prazer do momento enquanto se aproximava da presença divina que a aguardava.

  Deus, ou como alguns preferiam chamar, o Eterno, estava diante dela, não como uma figura severa, mas como uma presença envolvente, acolhedora, mas repleta de um poder incomensurável. A luz que irradiava dele não ofuscava, mas preenchia o ambiente com uma tranquilidade quase ilusória.

-Temos um problema, - disse o Eterno, a voz ecoando em todas as direções ao mesmo tempo, como se cada partícula de ar estivesse carregada com sua presença.

Orm estendeu seu braço  -Pai, quer uma torrada? Fiz com Presunto, não sei se o senhor gosta.

O olhar de Deus pousou na torrada, e um leve suspiro escapou de seus lábios, misturando preocupação e um toque de resignação. -Você e suas torradas, Orm. Às vezes, eu me pergunto se você realmente entende a gravidade da situação.- O tom de sua voz era sério, mas o gesto da filha, oferecendo algo tão simples e humano, fez com que um canto de seus lábios se erguesse, quase involuntariamente.

Percebendo a contradição no olhar de seu pai, ela sorriu; a divindade elevada que se preocupava com o destino do mundo, mas que ainda, por um momento, podia ser tocada pelas pequenas coisas da vida.

O Eterno fez um gesto, e uma névoa escura se materializou no centro do salão. Naquela névoa, sombras dançavam e contorciam-se como se fossem seres vivos. A escuridão tinha um peso. Era o plano Umbral, onde as almas perdidas – aquelas que rejeitavam a purificação ou a justiça – aguardavam seu destino final. Orm se aproximou do pai

-Quem são?-

-Almas-  o Eterno começou, observando a névoa como se fosse um quebra-cabeça que precisava ser resolvido. -Escaparam essa manhã. Foram mais espertas do que prevíamos e agora estão à solta... na Terra.

A expressão de Orm permaneceu firme, mas no fundo, sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Almas fugitivas não eram apenas problemáticas, eram perigosas. Muitas vezes, esses seres vinham com sede de vingança, carregando as trevas que os consumiram em vida. -Quantas almas estamos falando?

-O suficiente para causar caos se não forem contidas. Não sabemos como ou quem deixou que elas fugissem .

-Distração?- Orm questionou, seus olhos fixando-se na névoa enquanto as sombras pareciam se arrastar na direção dela.

-Para algo maior que ainda não conseguimos decifrar. Mas, por enquanto, precisamos que essas almas sejam detidas e trazidas de volta.

Orm suspirou profundamente
-Por que eu?-  perguntou, não desafiando, mas querendo entender a magnitude da responsabilidade que estava sendo jogada sobre seus ombros.

O Eterno inclinou-se levemente para frente -Porque você é uma das melhores. Já lidou com forças sombrias antes e manteve sua pureza. E você não só consegue caçá-las... você entende como elas pensam. Essa missão requer alguém que saiba lidar com as trevas sem sucumbir a elas.

Orm acenou em concordância, embora algo dentro dela ainda estivesse inquieto.

-Eu farei isso- respondeu, a voz firme. -Vou trazer essas almas de volta

- Lembre-se, nem tudo é o que parece na Terra. E... talvez, você não vá fazer isso sozinha.

-Eu sei, vivo naquele lugar, esqueceu? Vou..

-Uma última coisa, Orm... não se deixe enganar. Velhos rostos podem reaparecer, e alguns deles podem querer te levar para caminhos que você já decidiu não seguir.

As palavras pairaram no ar por um momento. Orm franziu o cenho, sem entender totalmente o que ele quis dizer, mas não perguntou. Conhecendo seu pai, uma hora ou outra suas palavras fariam sentido.

Ela tentava processar o que acabara de ouvir. As almas fugitivas. A responsabilidade que agora recaía sobre seus ombros. Era um peso que não poderia ignorar, mas a ideia de ter que enfrentar tudo isso sozinha, ou talvez não, a deixava ainda mais ansiosa.
O cheiro familiar de café a envolveu ao chegar em casa. O lugar estava em silêncio, mas havia algo diferente no ar. Uma mala escura estava encostada contra a parede, bem ao lado do sofá. Orm franziu a testa. Ela não lembrava de ter deixado nada ali.
Com um movimento hesitante, ela abriu a mala e ficou paralisada. Dentro, encontrou uma coleção de itens, um rastreador digital de almas reluzia em meio a roupas práticas, projetadas para a missão. Havia também frascos com líquidos coloridos — os ingredientes necessários para a bebida que ajudaria as almas a retornarem ao umbral.

-Uau, alguém realmente se antecipou-  murmurou para si mesma, examinando os frascos. Os ingredientes eram exatos: ervas do campo etéreo, um pouco de néctar celestial e um toque de essência do umbral. Era tudo o que precisava para realizar o trabalho.

Ela pegou o rastreador, que pulsava levemente em suas mãos. Sua tecnologia era impressionante, um dispositivo que poderia localizar as almas perdidas e guiá-las de volta ao caminho certo.
O silêncio do apartamento parecia amplificar seus pensamentos.
O que eu faço agora?

O que Deus realmente esperava dela?

a Dança do Eclipse- LingOrmOnde histórias criam vida. Descubra agora