Ling estava sentada no bar, o copo de whisky na mão, o olhar distante enquanto relembrava a noite anterior à briga com Orm. A discussão ainda ressoava em sua mente, as palavras de Orm cortando como lâminas afiadas.
— Você podia ter escolhido a gente! — Orm gritou, a frustração e a dor em sua voz ecoando nas paredes.
— E você acha que eu não escolhi? — Ling murmurou, suas palavras carregadas de um peso que Orm não tinha percebido antes. -Acha que não me custou nada? — A verdade era que cada escolha que fazia vinha com um custo, e ela sentia isso mais do que nunca.
Ela lembrou-se da noite em que Orm perdeu as asas. A cena era vívida em sua mente: Orm caída, ferida e vulnerável, a dor refletida em seu rosto. A imagem do hospital surgiu em sua memória. Não havia outra opção; demônios não podiam entrar em Celestia, e Ling sabia que precisava proteger Orm, não importa o custo. Ela fugiu com Orm nos braços, a adrenalina bombando em suas veias enquanto se teletransportava pelas ruas escuras.
Lembranças do hospital, o cheiro de desinfetante e o som das máquinas, inundaram sua mente. Os médicos correram até Ling, mas o mundo dela se fechava em uma espiral de medo, seu coração batendo em um ritmo caótico. Quando finalmente tiraram Orm de seus braços, algo quebrou dentro de Ling. Ela se agarrou ao corpo inerte da amada, mas foi forçada a soltá-la.
— Não! — Ling gritou, sua voz rasgando o silêncio. — Orm! Orm!
Ela tentou atravessar a porta, mas mãos firmes a seguraram. Seus olhos desesperados encontraram os de um dos médicos, que balançou a cabeça.
— Você não pode entrar.
O grito ecoou por sua garganta novamente, mas as portas da emergência se fecharam com um clique final, isolando-a do corpo frágil de Orm, de toda a luz que já conhecera. A sensação de impotência a esmagou, e, antes que percebesse, suas pernas cederam. Ela caiu de joelhos no chão frio, as mãos tremendo, os olhos fixos naquelas portas fechadas como se, de algum modo, a vontade dela pudesse forçar a vida a voltar para Orm.
A sala de espera estava silenciosa, mas dentro de Ling, uma tempestade rugia. Ela olhava ao redor como se o ar estivesse sendo roubado de seus pulmões, os sons do hospital se transformando em murmúrios distantes. Tudo o que ela sabia é que Orm estava lá dentro, lutando, e ela não podia fazer nada.
As mãos trêmulas se erguiam, entrelaçadas em uma oração que, até aquele momento, jamais teria imaginado fazer. A voz estava rouca de tanto gritar por Orm. No auge do desespero, seu coração clamou por uma força maior, mesmo que essa fosse a de quem ela menos esperava..
— Pai nosso, que estás no céu...
Um demônio, de joelhos, clamando por Deus. Ela nunca havia pensado que chegaria a esse ponto, nunca imaginou que se ajoelharia diante d’Ele, implorando, sacrificando o que restava de seu orgulho. Cada frase parecia arrancar um pedaço de si, como se a oração fosse um sacrifício, o maior que poderia fazer.
E era.
— Santificado seja o vosso nome…
A boca seca mal conseguia pronunciar as palavras, mas elas saíam. E com cada uma delas, vinham espasmos de dor, como golpes invisíveis. Era como se estivesse quebrando cada parte de si, pedaço por pedaço, em uma súplica que sua natureza jamais permitiria. Ela estava indo contra tudo o que era. O ar que entrava em seus pulmões parecia ácido, queimando enquanto tentava continuar.
— Venha a nós o vosso reino... seja feita a vossa vontade…
A cada sílaba, uma dor cortante percorreu seu peito, como se uma lâmina estivesse rasgando sua carne por dentro. Algo queimava profundamente em sua alma, um fogo que não a purificava, mas a condenava por ir contra tudo que sempre foi. O calor era insuportável. As mãos, trêmulas e suadas, apertaram a camisa com força até que seus nós dos dedos ficassem brancos, as unhas cravadas na própria pele, como se tentando ancorar-se em algo, mas nada a segurava.
— Assim na terra como no céu... o pão nosso de cada dia nos dai hoje...
Pequenas fendas pareciam se abrir em sua pele, marcas de cicatrizes invisíveis, mas permanentes. Marcas que não sumiriam, lembranças de que, naquele momento, ela traiu a própria essência por amor a Orm.
Ela hesitou, as lágrimas escorrendo pesadamente. Orm estava entre a vida e a morte, e Ling sabia que tudo o que já fora não importava mais. Não agora. Não quando a única coisa que importava estava naquela sala, lutando por sua vida.— Perdoai-nos as nossas ofensas... assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...
Ling riu, um som amargo e desesperado. Ela, uma filha do inferno, falando sobre perdão. Mas as palavras tinham um peso, e a realidade de seu ato era clara. Cada sílaba proferida era um sacrifício.
— Não nos deixeis cair em tentação... mas livrai-nos do mal...
E então, quando sua voz vacilou na última frase, o fogo em seu peito se intensificou de tal forma que ela se dobrou para frente, sentindo como se o coração estivesse prestes a explodir. Uma lágrima quente caiu em sua mão e, ao olhar, viu pequenas manchas de sangue. Sua carne estava marcada. Cicatrizes profundas que não seriam curadas, memórias gravadas na sua pele e alma para sempre.
— Amém…— Ling sussurrou. As palavras estavam pesadas, como se estivessem saindo de um lugar que ela jamais soubera que existia. Um sacrifício. Ali, de joelhos, Ling oferecia tudo o que era. Um demônio de joelhos, clamando por Deus. Era uma cena que ninguém acreditaria, algo que parecia impossível até mesmo para ela, mas nada mais importava. Orm era a única coisa que importava. Ela era sua luz, sua redenção.
— Eu não posso perder ela, não posso... — Ling murmurou. — Não deixe isso acontecer. Eu estou implorando, de joelhos, só me escuta dessa vez. Deixe-a viver. Salva ela.
O silêncio voltou a tomar conta do lugar, como se até o tempo esperasse a resposta para aquela prece.
Ela abriu os olhos, ainda com lágrimas quentes escorrendo, e percebeu que as mãos entrelaçadas estavam trêmulas. Cada pedaço dela doía, cada centímetro queimava com o peso do que fez. O sacrifício de um demônio se rendendo a algo divino.
Ling sentiu como se o mundo estivesse desabando ao seu redor, mas de repente, algo suavizou a dor. Um toque leve em seu ombro, quase imperceptível, trouxe um alívio inesperado. Lentamente, ela abriu os olhos e, ainda ofegante e com as lágrimas caindo, ergueu a cabeça.
Deus estava lá, olhando para ela com uma expressão que a surpreendeu. Não era o julgamento severo que esperava, nem a frieza que imaginava. Seus olhos transmitiam um entendimento profundo, um carinho quase paternal. Havia algo de agradecimento em seu olhar, como se reconhecesse o sacrifício que ela, filha de Lúcifer, estava fazendo naquele momento.
Por eles, quatro anjos passaram silenciosamente, movendo-se em direção à sala onde Orm estava. Ling sentiu o coração apertar, mas ao mesmo tempo, uma calma tomou conta de seu ser. Deus então desviou o olhar para a porta, tirou a mão de seu ombro e deu alguns passos em direção à filha. O silêncio entre eles continuava, mas falava alto no coração de Ling. Ela queria gritar, perguntar se Orm ficaria bem, mas as palavras simplesmente não saíam. Algo dentro dela, entretanto, dizia que Ele sabia. E, mesmo sem promessas, ela se agarrou àquela esperança.
Sem ter forças para continuar ali, e sentindo que sua presença não mudaria mais nada, Ling se levantou devagar. As lágrimas ainda escorriam por seu rosto, mas ela as limpou com as costas das mãos, respirando fundo uma última vez. Sabia que não poderia esperar por Ele, nem pela resposta que tanto queria ouvir. Com o coração pesado, mas carregando a última faísca de fé que conseguira encontrar, Ling virou-se e foi embora antes que Deus voltasse.
O som de seus passos ecoou pelos corredores vazios, deixando para trás o peso de um sacrifício que nunca acreditou ser capaz de fazer.
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a Dança do Eclipse- LingOrm
FanficEm um universo onde religião e ordem ditam a verdade, até que ponto um amor pode ser considerado impossível, quando nem o céu nem o inferno conseguem conter o desejo ardente entre duas almas? Após um inesperado reencontro, paixões antigas ressurgem...