Ostracismo é quando alguém ou a sociedade isola, exclui o bane uma pessoa. Auto-ostracismo diz respeito ao fenômeno no qual uma pessoa, voluntariamente, se exclui ou isola de interações sociais. Já falei sobre isso em diferentes contextos. Hoje queria analisar como posso ter me tornado essa pessoa pela perspectivas das Altas Habilidades/Superdotação (AHSD).
Como já mencionei antes, sempre acreditei que tinha me tornado uma pessoa reclusa e defensiva por ser gay. Aquela velha história: meu pai me rejeitava e reprimia por isso, meus colegas de escola faziam bullying e me excluíam por isso.
Eu cresci me sentindo meio à parte da sociedade por nunca conseguir me sentir integrado a nenhum grupo - pelo menos não por muito tempo. E o fantasma de ser gay estava sempre lá para me lembrar de que eu não era como os outros.
Acontece que tenho estudado sobre AHSD desde que a minha analista me identificou. E então estou sendo levado a revisitar a minha história a fim de redimensionar o peso dos fatores nessa equação cujo resultado sou eu.
Fato é que sempre que se fala nos "problemas" comuns enfrentados por superdotados, a dificuldade de socialização está entre os top três. Na minha vida, eu diria que esse é o meu principal problema.
Hoje pela manhã, estava lendo um artigo de uma autora importante no Brasil sobre esse assunto (AHSD), Angela Virgolim. Nesse artigo, ela menciona os diversos aspectos "positivos" da superdotação, e também o que nos torna mais vulneráveis a alguns problemas, entre eles a dificuldade de socialização.
E então, lendo essas coisas, comecei a perceber que ser gay não foi o único fator que contribuiu para o meu auto-ostracismo. Quer dizer, já venho elaborando esse pensamento há algum tempo, mas hoje isso ganhou mais clareza. Estou descobrindo que a superdotação pode ter sido a maior influência. Vou descrever como entendo que isso aconteceu comigo.
Auto-ostracismo não provocado diretamente pela superdotação:
- Rejeição paterna: sempre me senti rejeitado por meu pai, mesmo antes de ele me rejeitar mais objetivamente por eu ter comportamentos "de menina". Sinto que vivenciei uma rejeição ontológica, ou seja, que me afetou profundamente na essência da minha existência - como se eu não devesse existir. Essa sensação me acompanha durante toda a vida - às vezes mais, outras menos intensamente.
- Homofobia: por ter comportamentos femininos, desde muito cedo fui repreendido, ameaçado, ridicularizado e excluído em contextos familiar, comunitário e escolar.
Auto-ostracismo relacionado às AHSD:
A novidade, como falei, está relacionada aos traços da superdotação que, agora percebo com mais clareza, influenciaram minhas socializações.
Diferença intelectual
Acho que o traço principal é o entendimento de certas coisas a um nível mais "avançado", considerando mais aspectos do fenômeno e mais complexidades relacionadas. Acredito que isso tenha contribuído para o meu desinteresse pelo que é mais básico ou trivial. Daí minha dificuldade de ficar "batendo papo", que sempre me soa superficial e sem objetivo.
A minha sobrevida em encontros sociais para bater papo é muito curta. Comumente perco o interesse, não consigo manter a concentração, tento aprofundar as conversas, na maior parte das vezes sem sucesso, e acabo desviando o foco para outra coisa, como o meu desejo profundo de ir embora para casa. O que acontece é um intenso desencontro entre mim e as outras pessoas.
Geralmente tenho mais interesse e curiosidade por uma variedade grande de assuntos, mas as pessoas normalmente não têm os mesmos interesses, ou não se interessam na mesma profundidade. O outro lado da moeda é que elas também não se interessam muito pelas minhas análises e interpretações. Ou seja, uma via de mão dupla para dificultar a formação de laços sociais.
Outro desdobramento dessa falta de "parceria intelectual" é que me sinto completamente solitário, sem ter com quem compartilhar as minhas impressões sobre a vida - ou seja, como dou sentido são só à minha vida, mas à vida em si.
Hiperestesia
Em segundo lugar, devo destacar outro traço da superdotação, que é a hipersensibilidade sensorial ou perceptiva (excesso de sensações) e, como desdobramento, a intensidade emocional.
Se você imaginar que o superdotado é alguém que percebe mais sons, luminosidade, aromas etc., ou seja, percebe mais coisas no mundo externo, pode entender que ele também percebe mais as emoções, sensações e sentimentos, ou seja, as coisas do mundo interno.
Então, ao mesmo tempo em que consigo muito rapidamente interpretar expressões faciais, conteúdos de fala, mensagens do vestuário e comportamentais, também consigo processar essas informações em alta velocidade e avaliar todo o repertório de emoções que elas deflagram em mim.
Com isso, cada interação social é como percorrer uma montanha russa, com muita intensidade emocional. Então você pode imaginar que quando as reações das pessoas a meu respeito são negativas, sinto tudo isso com muito mais clareza e intensidade, justamente porque estou atento ao que se passa aqui dentro do meu corpo como um todo. Eu sofro intensamente ao menor sinal de julgamento ou rejeição (provavelmente porque já tenho um software calibrado para detectar qualquer sinal de rejeição, devido aos traumas). Sofro tanto que procuro me defender desses desgastes emocionais, evitando interações. Resultado? Auto-ostracismo.
Mas também preciso ressaltar que toda interação social é altamente exaustiva para mim, porque realmente estou cem por cento presente de corpo e alma, fazendo todas essas análises enquanto tento ser interessante, gentil, respeitoso e, se possível, gostado. No fim, evitar interações me parece sempre a escolha mais econômica para minha economia emocional.
Zero expectativa
Acredito que essa combinação de rejeição paterna, homossexualidade e AHSD impulsiona em mim uma forte tendência ao isolamento. O que me parece ser um sintoma óbvio de defesa contra a crueldade das pessoas (não todas, obviamente, mas poucas bastam para fazer um grande estrago).
Com tudo isso, você pode entender se eu disser que vivo com zero expectativa sobre me abrir para o mundo. Pode entender, inclusive, porque me esconder é parte desse sintoma maior de me proteger da hostilidade humana.
Mas essa "zero expectativa" não é real. É mais uma forma de proteção contra a rejeição e o ridículo. Como sofrer uma rejeição se não espero ser acolhido nem amado?
Expectativa total
Mas a verdade é que tudo o que eu mais quero nessa vida é encontrar meus pares. Não falo muito sobre esse desejo porque admiti-lo é o mesmo que reconhecer o meu fracasso no domínio da socialização. Mas acho que não socializo tanto porque não encontrei o meu bando. Como o patinho feio, você sabe.
Esses dias vi um meme com alienígenas sendo abduzidos para uma nave espacial e o texto: "Superdotados sendo resgatados para seu planeta de origem". Fiquei com essa ideia na cabeça, de existir um lugar onde eu pudesse realmente me relacionar com semelhantes.
Mas, verdade seja dita, acho que essa é uma fantasia utópica porque, em última análise, todo ser humano é tão único que talvez não exista isso de semelhantes. Mesmo nos grupos de superdotados no whatsapp do qual faço parte não existe tanta coesão quanto eu imaginava.
Será que os normopensantes sentem tanta solidão? Me diga você.
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Como ser normal sendo superdotado - Diário
Non-FictionParecia que eu já tinha conseguido vencer na vida. Afinal, eu meio que tinha descoberto como ser normal sendo gay. Mas é como dizem, quando você encontra uma resposta, vem a vida e muda todas as perguntas. E foi isso o que aconteceu quando descobri...