4. Cérebro em ebulição

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Eu sempre me considerei diferente das outras crianças. Mas eu achava que isso tinha mais a ver com o fato de eu ser gay. Por mais que eu soubesse que era um pouco mais inteligente que a média, nunca imaginei que pudesse ser superdotado.

A verdade é que chegar a essa conclusão "diagnóstica" está provocando mudanças na minha subjetividade. Hoje quero falar brevemente sobre isso.

E não tem jeito melhor de começar esse assunto do que dizendo que me sinto como se tivesse remexido a areia do fundo de um aquário. Tudo o que tinha encontrado o seu lugar antes agora precisa se rearranjar em uma nova configuração, a qual é imprevisível.

É claro que fiquei feliz num primeiro momento. A inteligência sempre foi uma questão complexa na minha vida. Essencialmente, eu sempre considerei que a minha inteligência era a coisa mais valiosa que eu tinha. Foi o que me deu força para superar momentos difíceis. Mas descobrir sobre a superdotação tem me mostrado que não se trata apenas de inteligência. É todo um conjunto de fenômenos que fazem com que possamos ser enquadrados em um grupo, apesar das diferenças individuais.

Inclusive, sobre a inteligência, muitas e muitas vezes me questionei se eu era realmente inteligente de verdade. E não tem uma expressão mais perfeita para descrever a minha sensação geral do que a "síndrome do impostor".  Sempre convivi com a sensação de que não era realmente bom em nada e que logo alguém descobrira a verdade sobre mim - que eu era uma fraude.

Agora sei que essa sensação é muito comum entre superdotados. E é oportuno falar sobre isso porque esse é um bom exemplo do tipo de transformação que estou vivendo após a identificação da minha neurodivergência.

Desde o dia em que a ficha finalmente caiu, eu me pego revendo minha trajetória sob novas perspectivas. Então, sim, cresci de mãos dadas com uma semipermanente síndrome do impostor. Mas também fiz amplo uso das altas habilidades em meu próprio benefício.

Tenho observado que diversos traços comuns entre superdotados são marcantes na minha vida. Um deles é a empatia. A primeira vez que ouvi essa palavra foi ao ler "A insustentável leveza do ser", do Milan Kundera - livro de 1982 que li quando tinha uns quinze anos. Além de empatia, também aprendi com esse livro o significado de compaixão. E tantas outras coisas.

Mas o fato é que recentemente, antes da identificação, me peguei analisando essa minha disponibilidade intensa e espontânea para a empatia. Na época eu cheguei a considerar que tenho uma empatia maior que a média e até pensei em escrever uma história de ficção sobre uma pessoa com esse superpoder: a superempatia.

Mas depois de descobrir que empatia é uma característica frequente em superdotados, eu não me considerei mais tão estranho. Porque, sim, sou diferente da maioria, mas sou igual ao "meu bando".

Então tem esse aspecto de pertencimento, que a identificação me trouxe. Assim como quando eu me decobri gay, me descobrir superdotado tem me permitido encontrar um lugar no mundo. E também me faz perceber que a minha sensação de despertencimento certamente não ocorre apenas pelo fato de eu ser gay, como eu sempre acreditei, mas por também ser neurodivergente.

É claro que, contando as coisas como estou fazendo agora, depois de tê-las vivido, faz parecer que todas essas descobertas são felizes e me colocam no trilho do sucesso. Mas acho importante dizer que existe um pouco de dor nisso tudo.

Tem ocorrido com alguma frequência o seguinte: estou devaneando sobre algum aspecto da superdotação e automaticamente me transporto para um momento do passado, muitas vezes na infância, mas também ao longo de toda a vida, quando revivo com intensidade determinadas experiências. E então compreendo, a partir da lente da identificação como superdotado, que determinados acontecimentos, o modo como reagi, como me senti, tudo guarda estreita relação com a condição de superdotado.

Basicamente, estou tendo insightos do tipo: "agora entendo porque foi assim".

Vou dar um exemplo. É um dos mais difíceis para mim de falar, porque sempre foi um calcanhar de Aquiles. Mas por toda vida sempre tive dificuldade para me relacionar com as pessoas. Não quero parecer arrogante, quero apenas ser sincero. Peço que você leia o que vou escrever com empatia, se for possível. Mas a verdade é que eu tenho baixo interesse pelo "conversê" cotidiano.

Explico: eu tenho um cérebro que está sempre trabalhando. Uma mente que é movida por desafios. E a maioria das minhas relações não são realmente desafiadoras. Isso afeta o meu nível de interesse pelas interações sociais.

A contrapartida também é verdadeira. É muito comum ver as pessoas bocejando enquanto eu falo, super empolgado, sobre alguma coisa do meu interesse. As pessoas em geral não têm interesse em formulações teóricas, análises e outras complexidades. Enquanto eu estou sempre pronto para uma maratona intelectual.

Então estou falando de dois problemas meus que andam de mãos dadas. Um deles é a dificuldade de estabelecer laços sociais significativos, principalmente por minha culpa, eu admito, uma vez que eu sou sempre quem escorrega para fora das relações. E o outro problema é a solidão. Que felizmente, ao longo da vida, tenho conseguido transformar em solitude. 

Mas até mesmo nesse campo espinhoso, tenho boas notícias.

Depois da identificação, ao compreender tudo isso que mencionei (o mútudo desinteresse intelectual entre mim e as outras pessoas), eu me dei conta de que poderia me aproximar dos outros em expectativa intelectual. O que me perguntei foi: o que as pessoas têm de interessante para além do intelecto?

Então comecei a me reaproximar dos amigos e da família. Como um antropólogo que chega a uma sociedade desconhecida e se pergunta o que há para descobrir nela. Você percebe como é uma mudança sutil, mas que traciona uma série de articulações que levam a mudanças maiores?

Ou seja: em decorrência da identificação, tive clareza sobre esse aspecto do meu funcionamento mental, percebi que busco conexão intelectual com pessoas que não têm os mesmos interesses. Me dei conta também de que, por toda vida, desfiz laços de amizade apenas porque achava as pessoas desinteressantes. Sendo que as pessoas são muito mais do que o seu intelecto. E que preciso delas.

Nesse sentido, gostaria de destacar que, entre outras iniciativas, recebi um casal de amigos para jantar aqui em casa. Amigos que podemos considerar intelectuais. E foi até mesmo surpreendente perceber que tivemos conexão emocional e também altas conversas sobre nossas vidas e diversos outros assuntos.

Preciso terminar por aqui o meu relato de hoje. Amanhã quero focar em um tema importante para mim, que é a intensidade de resposta emocional. Essa é outra característica dos superdotados que é super presente em mim e que, após a identificação, passou a fazer mais sentido.

Estou feliz por compartilhar tudo isso. Ainda me sinto um pouco envergonhado de falar sobre o assunto. Mas estou encarando o desafio de me assumir por completo como sou.

Não faria tanto sentido escrever se não houvesse ninguém para ler. Por isso, obrigado por estar aqui comigo.

Como ser normal sendo superdotado - DiárioWhere stories live. Discover now