Capítulo 1

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     Ainda sentia uma pontada no peito toda vez que eu passava por esse caminho. Talvez tenha sido uma péssima ideia enterrá-lo aqui, eu ainda conseguia ver a pequena cruz fincada no chão acima do barranco lamacento. Suspirei. Podia jurar que além de ver a cruz ali em cima, eu o via abanar o rabo me olhando. O pelo dourado refletindo no sol e às vezes opaco pelas nuvens escuras, não foi justo perdê-lo daquele jeito.

Não consegui correr a tempo suficiente para segurar a guia, as patinhas correram rápidas e saltitantes sobre a faixa de pedestre. Não importava o quanto eu gritasse pra ele parar, eu via o balançar dos pelos passando entre as pessoas. Quase o alcancei, mas o caminhão foi certeiro. O sangue fresco ainda pingava no chão acinzentado, os faróis estavam vermelhos.

Eu gritei tanto para ele parar e ele não me ouviu.

— Você matou meu cachorro! –a voz embargada saiu falhada.

O homem estava agitado, andava de um lado para o outro

— Ele não pode andar solto por aí! –o homem gritou.

O trânsito estava parado, várias buzinas, pessoas tristes ou estressadas e nada disso me importava mais. O peguei com dificuldade nos braços, ainda sentia seu cheiro. O meu cheiro... As lágrimas queimavam a minha pele, às vezes embaçava minha visão. Não esperei por lamentos, continuei caminhando com Flin nos meus braços. O sangue escorria em mim quente, mórbido e entristecido, fazia o seu caminho lentamente até meus cotovelos ou descia até minha calça. Mas não me importei, precisava dar uma despedida digna para ele. Não tinha decidido como contar aos meus pais. Talvez eu nunca contasse.

A floresta se aproximava. As pessoas andavam mais rápido ao passar por ali. As crianças barulhentas desafiavam umas às outras a entrarem pelo estreito caminho de terra alaranjada. Mas poucos conseguiam. Temia pelas suas vidas, mas naquele momento eu não pensei, eu não questionei. A floresta estava silenciosa. Folhas secas voavam devagar como se temessem fazer barulho.

O pisar de meus pés ecoavam na terra úmida, coloquei com cuidado o corpo frágil de Flin no chão, sequei as lágrimas com o braço. Minhas mãos tinham o seu pelo, seu cheiro, seu sangue. Fiquei de pé olhando para ele por alguns minutos. Não sabia o que fazer. Em volta apenas o silêncio mórbido. O sol brilhava naquela maldita manhã e seus reflexos se espalharam por entre os troncos esguios. Ajoelhei devagar amassando as folhas secas envelhecidas pelo tempo. À minha frente havia um galho seco, estiquei meu braço direito sobre Flin e peguei o galho. Andei alguns passos para trás. Enfiei o galho no chão com força suficiente para furar a terra. Continuei cavando alargando os espaços para que ele não ficasse apertado. Senti a terra entrar embaixo de meus dedos se acomodando sob minhas unhas e meus pulsos estavam doloridos e quanto mais eu olhava para Flin mais força eu apertava a terra. O céu acima de mim permanecia azul, um dia aberto aquela manhã o que me irritava ainda mais. Eu estava de luto, queria que tudo estivesse de acordo. Não pode haver enterros em dias de sol. Limpei as mãos na calça cinza. A camiseta branca mesmo que por baixo do casaco estava suja, nem tinha notado que o sangue dele havia colado a camisa em meu abdômen.

Coloquei ele aos poucos dentro da pequena cova. Rasa e fria. A cada mão cheia de terra que cobria seu corpo, eu me despedaçava mais eu via seus pêlos sumirem. As lágrimas já desciam sem controle, queimava minhas bochechas, o nó na garganta me atrapalhava engolir.

Terminei encarando a cova. Uma cruz! Ele precisava de uma cruz, não me interessava saber se podia ou não. Ele precisava. Peguei dois galhos, arranquei meu cadarço do tênis e amarrei os galhos para que formassem um X. Posicionei sobre o túmulo de Flin. Ele iria me fazer tanta falta. Doía meu peito.

Caminhei devagar para longe do túmulo e vez ou outra olhava para trás. A cruz ficaria visível da estrada quando eu passasse ali de manhã. Desci o barranco me espetando nos galhos. Fiquei um tempo olhando a cruz mal feita. Cheguei em casa na hora do almoço. O cheiro de comida embrulhou meu estômago. Enruguei o nariz engolindo a saliva.

— Onde você o enterrou? –minha mãe abriu a porta me encarando.

Eu não disse nada. As palavras pareciam entaladas. Ela me abraçou.

— Vai ficar tudo bem Luke.

Suspirei sentindo as lágrimas vindo. Ela não me soltou, mesmo eu coberto de terra, sangue e pêlos do Flin. Meu pai se aproximou sentando na banqueta, nos observou e guiou seus olhos para mim. Deu um meio sorriso. Seu semblante tão triste quanto o meu.

— Oswald me disse o que houve. –Ele desviou os olhos para o jarro sobre a mesa. Minha mãe se afastou.

— Vou pegar uma água pra você. –Ela sorriu secando as lágrimas.

Permaneci em pé. A imagem do acidente estava muito clara, ainda ouvia o último grito de Flynn. Os gritos das pessoas. Os meus gritos.

— Eu tentei segurar a coleira, mas... –suspirei fundo, —... Ele conseguiu escapar. Eu juro que tentei. –Minha visão embaçou. Droga.

— Não foi culpa sua. Cachorros são agitados assim mesmo, quem iria imaginar? – meu pai tentou sorrir. O encarei.

— Já perdi o Thomas... E agora meu cachorro. Realmente não dá pra imaginar. –Suspirei. Senti a raiva consumir meu corpo e preferi ficar sozinho.

Subi as escadas degrau por degrau. O peso do luto pesava em meus ombros. Eu não tinha superado Thomas, eu não estava pronto para perder meu cachorro também. Tranquei a porta do quarto. Lembro quando Thomas estava super feliz me contando da viagem para fora do país. Estava tão ansioso que as palavras se atropelavam. E depois de me dizer tchau, pediu a Flin que cuidasse de mim. Balancei a cabeça de um lado para o outro, isso não podia estar acontecendo comigo.

Entrei no chuveiro ainda vestido. Fiquei observando o sangue descer entre as fibras da minha roupa, deixando o piso branco rosado, se diluindo na água e esvaindo pelo ralo. Era como estava indo minha vida. Sem esperança de algum destino bom, senão se sucumbir à morte.

Fechei os olhos.

A solidão me corria a tanto tempo que as feridas pareciam não existir, mas perder meu cachorro trouxe à tona toda a angústia que eu tinha escondido em mim, era como abrir novamente a ferida. A ardência nos meus olhos não me deixava ver nada. A água morna descia meu rosto desenhando linhas tortas que levava para o mesmo caminho de lágrimas e aquela água sangrenta. Ouvi eles baterem na minha porta, mas ignorei. Nada que dissessem me faria sentir melhor, palavras de consolo na verdade não te consola só te faz se sentir um bobo. A pena que sentem de você é tão lamentável quanto o fato.

Fiquei um tempo debaixo do chuveiro esperando me livrar do sangue. Tirei as minhas roupas e as empilhei fora do box. Tudo iria para o ralo mesmo, nada mudaria isso. O tempo vai passar, essas lembranças vão se esconder em mim no profundo e escuro ralo. Voltar para a escola era um recomeço, mas eu ainda não tinha certeza. Estava fazendo isso por Thomas e meus pais porque eu ainda senti o nó na garganta.

 Ainda me lamentava e ainda reclamava da minha vida, mas prometi a eles que tentaria sobreviver a isso e tentaria até o fim. 

Através do Espelho {CONCLUÍDA}Onde histórias criam vida. Descubra agora