Uma nova casa

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Rio de Janeiro, 2002

Foi um grande trabalho. Um trabalho que exigiu bombeiros, policiais, assistentes sociais e médicos de todas as especialidades possíveis. O incêndio na escola de Artes Alaia foi uma tragédia de proporções inimagináveis. Quem sobreviveu carregava consigo o peso da gratidão, mas também de uma dor que só quem passou pelo caos podia compreender.

— Samuel? — A médica responsável pelo senhor se aproximou com uma expressão serena, embora cansada. — Acho que está pronto para receber alta.

Samuel já havia trocado de roupa e guardava, com cuidado, cada pequena lembrança que as enfermeiras lhe deram, incluindo um casaco surrado e uma garrafa d'água. Tudo cabia numa única mochila.

— Sou muito grato a vocês, doutora. Mas agora preciso ir atrás dos meus sobrinhos.

A médica respirou fundo, sabendo da determinação do homem. Ele já tinha ouvido a verdade, mas recusava-se a aceitá-la por completo.

— Samuel, nós já conversamos sobre isso…

Ele sabia. Sabia que muitos não tinham sobrevivido e que os poucos que resistiram estavam dispersos por três hospitais diferentes. Mesmo assim, mantinha uma esperança inabalável.

— Eu sei o que me disseram. Mas enquanto houver vida, há esperança. E eu vou encontrar minha família. Todos eles.

Com 10% do corpo queimado havia sofrido muito. No entanto, comparado aos outros, aquilo era quase nada. Sua dor física era mínima perto da angústia que o consumia. Ele gritou, implorou aos médicos, descrevendo os rostos daqueles que amava: Ada, Nico, Vanessa, Luiz... tantas crianças que ajudou a educar.

— Você é um guerreiro, Samuel. — As enfermeiras murmuravam, impressionadas com sua força e resiliência. — Já sabe para onde vai agora?

— Meu pai me deixou um terreno. Vou até lá. Eles merecem uma casa, um lugar seguro.

Ele sorriu, um sorriso que era um misto de esperança e dor. Não era apenas pela dor da perda, mas pela fé inabalável de que ainda encontraria sua família.

— Que você tenha sorte e encontre todos.

— Tenho fé de que vou. — Respondeu, com firmeza, enquanto ajeitava sua mochila nas costas.

Ele preparou a única mochila e se preparou para uma longa caminhada. Já morava em Petrópolis há quatro décadas e mal se lembrava do Rio de Janeiro. Sua única certeza era a música que o pai cantarolava. “Te vejo no meu São Cristóvão…” Samuel andou como não fazia há muitos anos até achar, escondido atrás de árvores, quase uma mata fechada, um terreno tomando forma.

Não demorou muito e encontrou Lucia, Vitor, Douglas... Aos poucos, achou sua família e eles se alocaram ali. Foram construindo suas casas, formando suas famílias e recomeçando a vida. 

Esse lugar, que ninguém sabia que crescia, foi batizado de Ofélia. Ali, Samuel não só encontrou seus entes queridos, mas também ofereceu abrigo a quem mais precisasse. Não tinham muito. Quase nada, na verdade. Entretanto, o que possuíam era dividido. Com carinho e sacrifício, eles garantiam que todos tivessem um teto, um prato de comida, e, acima de tudo, um lugar para chamar de lar.

Com o passar dos anos, Ofélia se tornou mais do que apenas um refúgio improvisado. As casas foram surgindo devagar, uma após a outra, levantadas com as próprias mãos daqueles que buscavam ali uma segunda chance. O bairro não estava nos mapas da cidade, escondido entre árvores e estradas esquecidas, mas para aqueles que o habitavam, era o único lugar que fazia sentido.

Samuel, apesar de seu corpo marcado pelas cicatrizes do incêndio, se dedicava a cada detalhe, ajudando não só a erguer as casas, mas também a criar laços. Ele acreditava que Ofélia não era apenas um lugar de reconstrução física, mas também emocional. Cada parede levantada, cada refeição compartilhada, era um pedaço de esperança restaurado.

Todos mereciam uma casa e fez isso.

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