Os advogados me visitaram e oficializaram tudo: Chris era meu guardião. Em breve eu finalmente iria me mudar desta cidade. Nunca pensei que pagaria um preço tão alto pela sonhada independência. Fiquei mais dois dias hospitalizada, pois os médicos queriam ter certeza que não havia sequelas de minha concussão. No final estavam tão prontos para se livrarem de mim, quanto eu estava deles.
Tia Beth, mãe do Chris, se ofereceu para guardar as coisas dos meus pais no porão de sua casa. Aceitei a oferta, pois seria complicado fazer sozinha com o imobilizador na perna. Além disto, colocar os pertences dos meus pais, tudo aquilo que os definia, em caixas era tão... Definitivo.
Ainda não me sentia pronta.
Como Sam havia me prometido, ela e sua mãe organizaram um ato ecumênico para a comunidade enquanto eu ainda estava no hospital. Hoje seria uma cerimônia íntima apenas comigo, John, Chris e sua família. O Delegado quando viu o filho chegar pediu desculpas e se retirou, Chris fingiu não perceber, mas ele também saiu o mais rápido possível. Logo os outros o seguiram, me dando um momento para me despedir.
As urnas agora estão dispostas lado a lado no mausoléu da família no velho cemitério. Sento-me no banco observando o triste lugar, a placa com tantos nomes esquecidos.
Do pó ao pó.
Caixas de papelão e urnas de metal eram tudo que restavam das duas pessoas que tanto fizeram por mim. Será que eu falei o quanto eu os amava naquele dia? Ou pelo menos naquela semana? Eu deveria ter dito enquanto ainda podia... Quando eles ainda estavam aqui para me ouvir.
Quase me arrependo de não ter aceitado a oferta de Chris.
Se a casa fosse minha, eu espalharia as cinzas no nosso quintal. Mamãe amava as flores e papai amava minha mãe. Então ele sentava com ela no banco de madeira entre as roseiras para assistir ao entardecer sempre que podia. Às vezes eu os observava pela janela do sótão: ele sentado no balanço e ela deitada em seu colo.
Tento secar minhas lágrimas, coloco meus óculos escuros e passo a mão nas urnas:
– Vocês se amavam tanto, agora estarão separados para sempre por duas urnas frias, cercados por pedras cinzas e parentes esquecidos... Não haverá mais flores e pôr do sol, não sobrou nada.
Escuto barulho de passos e quando me viro vejo John ocupando toda a entrada, casualmente encostado na grade. Sinto-me exposta, este era para ter sido um momento privado.
– O que você está fazendo aqui? – pergunto ríspida.
Tento andar com minha bota de imobilização no terreno irregular, mas mal consigo equilibrar. Ele responde minha pergunta com outra:
– Precisa de ajuda?
As mãos dele em cima de mim enquanto ando em um terreno incerto?
Lembro da minha reação ao seu toque, porém acabei de abandonar as pessoas que mais amo em urnas. O elenco inteiro de Magic Mike poderia vir me carregar no colo que nem o Channing Tatum e sua trupe despertaria minha libido.
Provavelmente.
– Apenas um apoio com o braço caso eu caia. Obrigada.
O trajeto é curto e estamos em silêncio. Chris deve estar chateado, mas não há muito a ser feito sobre isto. Ao longo dos anos ele sempre me dizia por telefone que era um alívio sair de casa. Nunca acreditei nele. Sei que no fundo importava sim. Chegamos ao estacionamento. Chris está cabisbaixo e apoiado em um carro preto. Antes de me soltar, John diz em voz baixa:
– Sobrou você.
– O quê? – pergunto confusa.
Pela primeira vez ele fala comigo sério, seu olhar azul diretamente em meus olhos cor de mel:
– Lá atrás você disse que não restava nada, mas você é a principal conquista deles. Sobrou você, Elle, viva por eles.
Com isto ele continuou andando e entrou no carro, me deixando sem palavras e sem apoio. Literalmente. Tive que ir mancando até um desolado Chris.
– E aí? – falo sem jeito.
Grande frase de consolação, mas realmente o que eu poderia dizer? "Como você está se sentindo após ser abandonado pelo cara que te gerou porque quis ter sucesso na carreira dos seus sonhos?"
– E aí? – Chris responde com voz rouca.
Aparentemente eu não sou a única com falta de inspiração hoje. Encosto-me no carro ao lado dele e aponto para as árvores além do cemitério.
– Lembra quando nos perdemos naquela floresta?
Ele dá um pequeno sorriso. Eu tinha sete e ele nove anos. Na escola havia uma história sobre uma casa habitada pelos espíritos do cemitério e a gente queria assustar a Sam. Para vê-los era preciso encontrar o chalé vermelho no meio da mata. Achá-lo foi fácil. Brincamos a tarde inteira de caça-fantasmas. Eu era Sigourney Weaver, ele era Bill Murray e Sam, o Geléia.
Foi divertido até anoitecer, quando tentamos voltar, mas pegamos o caminho errado. Passamos horas de fome, frio e medo, até que O Delegado nos encontrou. Na época eu não percebi, mas aquela foi a primeira vez que a máscara de policial escorregou e vi a preocupação paterna surgir. Chris pensou que ia ser muito castigado, mas o pai dele estava tão aliviado por achar os filhos que tinha sido carinhoso. Os cuidados que ele recebeu depois do incidente quase fizeram os momentos assustadores valeram à pena e hoje trouxeram um sorriso ao seu rosto:
– Sim, aquilo foi divertido. Você passou a semana me chamando de Dr. Chris "Venkman". Quer ir ver se ainda está lá?
Aponta para a bota na perna e falo brincando:
– Pode não ser muito fácil agora com esta belezinha aqui, mas se você acha que isto vai ajudar a recuperar o relacionamento com seu pai, eu topo!
Seu rosto se fecha imediatamente:
– Não se recupera o que nunca existiu, Helena. E mesmo que houvesse, não é algo que eu me importe. Agora entre no carro, meu voo parte em uma hora.
Por que abri minha boca grande? O luto não é um processo exclusivo da morte, perder alguém que a gente ama é sempre doloroso, não importa o motivo. Acho que não sou a única a não ter superado a perda da família...
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AVG
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