Prólogo

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Debaixo da ponte

Apareceu um rasgo na lona

E os animais que capturei

Todos se tornaram meus bichos de estimação

Nirvana – Something in The Way


     DENISE OLHOU para o retrovisor e encontrou o próprio olhar carregado de pânico. Apertou as mãos em torno do volante e tentou se concentrar na voz masculina do outro lado da linha.

— Por que você não me avisou, Roger?

— Você estava viajando...

— Você não devia ter deixado ele sozinho!

— Ele parecia melhor! Estava estabelecendo rotina. Nunca imaginei que pudesse tentar algo do tipo.

Denise fungou, as lágrimas deixando sua noção de direção comprometida. Ela só pensava na escuridão calamitosa a qual o menino não conseguia escapar, e por pouco, a maior das tragédias teria acontecido.

— Faz quanto tempo?

— Uma semana após sair do hospital. Eu fui até a mansão para ver se ele estava por lá, mas tudo o que encontrei foram rastros do incêndio.

Denise lembrou como prometeu ao seu velho amigo Richard, antes de seu falecimento, que cuidaria do filho dele. Embora tivesse criado uma rede de apoio com a ajuda de Roger, o vício em drogas do garoto intensificou ainda mais a dificuldade de ele aceitar o luto, o que desencadeou ferimentos emocionais já existentes.

— Como aconteceu?

— Ele estava completamente drogado, pelo menos foi isso que os médicos disseram. Segundo a perícia, deixou cair cigarro aceso no quarto antes de adormecer no andar de baixo. Um dos vizinhos viu um homem invadindo a casa já tomada por chamas. Se não tivesse chegado a tempo, o garoto teria morrido asfixiado.

Ela engoliu em seco.

— Que homem foi esse?

— Não sei. O médico disse que ele desapareceu antes de ser identificado.

Denise olhou as ruas, torcendo para serapenas um de seus sumiços frequentes. Ele costumava passar noites, às vezesdias, desaparecido. Mas sempre voltava. Por que agora parecia diferente?

O problema era que ele não tinha mais ninguém para quem voltar...

— Eu preciso achá-lo — Denise sussurrou para si mesma. — Eu preciso encontrar o meu menino.

— Você sabe que seria importante contar a verdade para ele, não sabe?

O coração dela disparou.

— Um dia, Roger.

— Esse é o melhor momento, Denise. Ele está sozinho no mundo.

— Isso vai destruí-lo. — Sua voz tremeu.

— Por favor, vai para casa. É muito tarde. Prometo que amanhã vou procurar em toda parte e não vou desistir até encontrá-lo.

— Eu aprecio a sua preocupação, Roger. Mas como acha que vou dormir sem saber onde ele está? Não vou voltar para casa sem ele!

— Certo. Então eu vou vestir um casaco e já encontro você.

— Não é necessário...

— Não vou te deixar sozinha. Envia sua localização, já estou indo. — E desligou.

As ruas internas estavam assustadoras a noite. Os arrepios intensos eram de frio ou medo? Não sabia dizer... Por sorte, ao retornar para casa branca de quatro andares, finalmente avistou alguém familiar dormindo no banco.

Denise abrandou o carro perto do meio fio e caminhou devagarinho, suplicando baixinho: "por favor, olhos, não me preguem uma peça agora". Porém, viu os cachos castanhos, as roupas pretas costumeiras, as botas... Ela mal conseguiu respirar ao reconhecer a case do violão que o rapaz carregava para todo lugar. Era ele...

Era ele em toda a sua devastação absoluta.

Deitado naquele banco sujo, apenas com a mochila embaixo da cabeça e a marginalização associada a suas feridas emocionais. Parecia tão frágil ali, abraçando o próprio corpo para se proteger do frio. O cabelo confuso caindo sobre a testa, os lábios avermelhados, o aspecto sujo.

Vê-lo em estado tão deplorável desencadeou uma crise de choro e o som ferido o despertou.

Ele estreitou os olhos como se tentasse desvendar se a visão dela era real, e ao levantar, amparou a mulher despedaçada em seus braços. Ela ouviu os sussurros dele repetindo que estava bem. Que adorável mentiroso...

Dorian Leduc atingiu o fundo do poço.

1994 - A canção Memória oculta LIVRO 1 (Privilegiados)Where stories live. Discover now