Capitulo 2

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Ei, Jude, não fique mal

Pegue uma canção triste e torne-a melhor

Lembre-se de deixá-la debaixo de sua pele

Então você começará a melhorar as coisas.

• The Beatles – Hey Jude 

ANGEL  

    Quando entrei na cozinha pela manhã, encontrei Robert na mesa com Denise e o enteado. Usava terno de corte simples, segurando a caneca de café. Puxou uma cadeira ao seu lado que, muito relutante, eu sentei.

— Dormiu bem, querida? — Denise sorriu, desta vez usando vestido verde de verão com os cabelos apanhados em um rabo-de-cavalo. — Fiquei preocupada com você. Não desceu para jantar...

— Eu estava cansada.

O silêncio veio. Todos pareciam sem jeito. Então eu disse:

— Tinha um cara dentro do quartinho dos fundos ou imaginei coisas?

Robert riu, erguendo as sobrancelhas em compreensão. Não que eu quisesse dialogar com ele, mas, o choque daquele acontecimento me deixou curiosa.

— Vejo que já conheceu Dorian.

— A gente se esbarrou, sim. — Decidi ocultar os detalhes sórdidos. — Por que não me contou sobre ele?

— Eu teria contado no jantar. — Robert me olhou de relance. — O garoto é filho de um falecido amigo da Denise. Ele vai ficar na nossa casa por um tempo.

— Por quê?

Edward, que até então se manteve silencioso, deixou escapar:

— Porque ele é um viciado em recuperação que colocou fogo na própria casa quando...

— Ed! — Denise lançou um olhar cortante típico das mães.

— O que foi?

— Você está sendo indiscreto. E ele não pôs fogo na casa... —Ela olhou em seguida para mim. — Foi um acidente terrível com um cigarro.

— Eu sei! Mas não é o que as pessoas do bairro dele dizem...

— Não devemos acreditar em tudo o que ouvimos por aí, filho. Você não deve falar coisas só porque os outros disseram. Não esqueça que a fofoca termina na boca do sábio.

— Desculpa, mãe.

— Ele é um bom garoto, mas teve problemas com drogas. — Robert interrompeu os dois. — Denise está sendo muito importante na reconstrução da vida dele após a morte do pai. Agora são sete meses sóbrio.

— Eu peço que não comente nada sobre o incêndio com ele, querida. — Denise pegou uma torrada na travessa. — Quero dizer, é um assunto delicado...

Não era como se eu estivesse interessada na vida daquele grosseiro...

Dorian apareceu, desejando bom dia a todos. Sentou ao lado de Denise, beijando-lhe o topo da cabeça e pegando uma xícara de chá. Fiquei tão perturbada com o nosso primeiro encontro que acordei pela manhã e pensei: "Teria sido um sonho? Aquela cena aconteceu?" Até pensei na possibilidade de estar imaginando coisas, mas ali estava ele...

— Você já conheceu a Angel, não é? — Robert mordiscou a torrada.

Ele me olhou intenso.

— Ah sim. A gente se conheceu, sim... — Sorriu de lado. —Você se recuperou do susto?

Meu rosto queimou.

— Que susto? — Denise me olhou curiosa.

Que cretino?

— Eu quase deixei uma jarra cair no chão, foi isso. Por sorte, peguei a tempo. — Pensei na primeira coisa que veio na mente. — Digo, eu não queria dar prejuízo.

— Bobagem, querida. Acidentes acontecem.

Dorian não me desmentiu, mas parecia estar se divertindo com a coisa toda. Trocamos um olhar e o entendimento tácito se estabeleceu entre nós: o que aconteceu no quartinho dos fundos seria segredo.

***

  A minha testa sentia o gelado da bancada do balcão enquanto eu unia forças para não gritar ou jogar meu telefone contra a parede. Havia acabado de ter uma discussão difícil com a minha mãe, que se recusou a me aceitar de volta.

— Isso é para você. — Uma voz fez meu corpo pular do banquinho.

Levantei a cabeça e dei de cara com Dorian me encarando. Carregava a case de violão nas costas, erguendo uma flor na minha direção. Franzi o cenho.

— O que é isso?

— Uma tulipa. Para me desculpar pelo incidente da manhã.

Dorian passou a mão nos cabelos e sorriu tímido. O cara não devia ser charmoso daquele jeito. Porém mesmo que o charme afiado intrigasse, o meu instinto treinado de defesa me fez dizer:

— Eu não gosto de flores.

— Como assim?

— Não gosto.

— O problema é a flor ou a pessoa que está te dando ela?

— As flores em geral.

Dorian soltou a tulipa no balcão e o sorriso se desfez. Que culpa eu tinha de achar tosco matar um ser vivo por alegria momentânea?

— Não precisava fazer isso. — Acendi um cigarro, traguei e expulsei o fumo entre os lábios. — A culpa foi minha. Eu não devia ter entrado no seu quarto daquele jeito. Você estava... nu.

Corei.

— Desculpa, é um costume dormir sem roupa.

— Não posso negar que foi chocante.

— Eu sei, ele costuma chocar as garotas mesmo.

Levei alguns segundos para perceber o que ele quis dizer e quebrei em risos, desencadeando a risada dele também. Tampei a boca com as duas mãos, arregalando os olhos. Rir foi tão espontâneo!

— Sabe, se calhar devemos esquecer o incidente? — Ele propôs.

— Depois daquela indireta no café da manhã?

— Foi só uma brincadeira. — Apoiou os cotovelos no balcão. — Devemos rir de nós mesmos, não acha? A vida fica descomplicada desse jeito.

— Certo.

Ele se afastou com seu andar despreocupado, parou no meio do caminho e olhou por cima do ombro.

— Só para garantir, vou trancar a porta, tá? Vai que um anjo venha interromper o meu sonho de novo? Ouvi dizer que muitos deles estão fazendo suas aparições por aí, então é melhor eu me prevenir.

Corei. Dorian me piscou um olho, charmoso, e seguiu em direção ao bendito quartinho.

— Pretencioso — sussurrei, endireitando a postura para sair, mas algo me deteve.

A tulipa estava jogada em cima do balcão, esquecida como se alguns minutos atrás não tivesse sido um símbolo de uma doce gentileza....

Longe de olhares atentos, peguei a flor e a levei comigo para guardá-la.

1994 - A canção Memória oculta LIVRO 1 (Privilegiados)Where stories live. Discover now