34.º Capítulo - Tempo

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- Essa tipa não tem mais nada que fazer do que falar da tua vida? – Perguntou o Axel, levantando-se do sofá e caminhando pelo quarto.

- A imprensa interessa-se por este tipo de coisas. – Falei, mudando de canal.

Aquele era o terceiro hotel para o qual nos tínhamos mudado num espaço de duas semanas. Continuava à espera do meu diploma de Mestre e ao mesmo tempo, tinha que evitar a comunicação social que parecia perseguir-nos pelo Porto dado que alguém do primeiro hotel, onde nos tínhamos instalado, reconheceu-nos e por isso, as câmeras e microfones não demoraram. Saímos pelas traseiras, não sem antes, o Axel dirigir várias palavras azedas ao gerente do hotel que não soube ser discreto.

Ultimamente, se ligasse a televisão, além das notícias sobre política, alguns crimes e meteorologia, pelo meio, tinham que falar sobre as atrações do momento. A história de uma das escritoras com mais livros vendidos pelo mundo. Se bem que aquela história não era minha e sim, de alguém que decoravam com a imaginação alheia. Para tal, perseguiam antigos conhecidos e desde ontem à noite, não largavam a Marisa que não demorou a falar do Guilherme, de quem ele era e da pessoa que ela julgava que eu era. Até o seu filho, Luís, acabava por ser atormentado pelas câmeras e por assuntos que não compreendia. Além da Marisa, também Fabiana se revelara no grande ecrã, contando a sua própria versão dos factos. O certo é que fosse ou não verdade o que diziam, as estações televisivas e as revistas pagavam bem por aquelas informações. A situação fugira totalmente do controlo e o pobre Miguel, nada mais fazia do que desculpar-se connosco e dizer que ainda não tinha desistido de processar um por um, cada envolvido em toda aquela teia de mentiras.

Na nossa última conversa, pedi-lhe que não se atormentasse tanto com o assunto e falando também com a Joana, disse que aquela situação era inevitável e que não havia razão para se martirizarem. Hoje em dia, quem pode deter a televisão? A liberdade de imprensa por vezes, parece não conhecer limites. Sempre pensei no direito à liberdade como algo positivo, porém, o outro lado da moeda é muitas vezes esquecido. Aquele lado que nos diz que a nossa liberdade acaba quando interferimos com a dos outros. A ausência desse princípio, mergulhava-me nesta situação de fuga à comunicação social e ao enclausuramento quase constante em hotéis. Queria sair, aproveitar o sol e caminhar um pouco, mesmo que os meus pés ao fim do dia, ficassem inchados. Todavia, não queria sair e ver-me rodeada de desconhecidos que me apontavam ou diziam coisas desagradáveis. Sinceramente, esperava que a minha faculdade se apressasse para que o regresso aos Estados Unidos se tornasse uma realidade. A minha cidade natal agora não só guardava os meus fantasmas, como também se tornara a minha prisão.

O único lado positivo de passar tanto tempo entre quatro paredes, era a minha estranha inspiração para escrever, pese a situação em que me encontrava. Penso que a minha mente usava a escrita como uma escapatória da realidade e graças a isso, podia dizer que o meu terceiro livro estava bem encaminhado e a aproximar-se do final. Contudo, não era a única afetada por aquela situação e se a escrita para mim era uma escapatória, o Axel parecia bem mais atormentado sem que nada, conseguisse tranquiliza-lo. Também as chamadas do Miguel que incidiam sobre os problemas financeiros que adivinham daquela praga da comunicação social, parecia deixá-lo ainda mais tenso. Embora fosse verdade que tentava sorrir para mim e mostrar-se forte, podia ver como tudo aquilo o afetava. Causava-lhe angústia, causava-lhe noites sem sono. Dar-me conta disso, entristecia-me. Saber que eu fazia parte das razões por detrás de tudo aquilo, chamava em mim, aquela parte negativa que dizia que estava a ser egoísta ao ponto de magoar alguém que já tinha feito tanto por mim. Porém, deixá-lo, seria ainda mais egoísta da minha parte. Se tínhamos decidido ficar juntos, seria dessa forma que iríamos ultrapassar aquilo. Só que mesmo sendo consciente disso, gostava de conseguir uma solução o mais rápido possível antes que aquele sorriso que tanto me alegrava, se perdesse nas expressões de angústia.

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