24.º Capítulo - A extensão da mentira

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- A minha irmã não está em casa, por isso podes ficar no quarto dela. – Disse, depois de que passei a entrada. Só que essa afirmação, fez-me parar por ali, dizendo que talvez fosse melhor ir para outro lugar. – Catarina, já disse que podes ficar no quarto da minha irmã. Vou ficar no quarto ao lado, não há problema.

Depois de chorar durante horas a fio, finalmente me convencera a acompanhá-lo visto que me recusei a regressar a casa. Os meus pais diriam frases como “Nós avisamos-te que não seria bom ires lá”. Seria rodeada de cuidados e olhares sufocantes. Acima de tudo, regressaria aquela casa repleta de recordações da pessoa que ainda tentava aceitar que talvez, não fosse bem aquela em que acreditei em todos aqueles anos. Fosse em vida e mesmo depois de morrer, continuei a venerá-lo e a colocá-lo num pedestal, onde homem algum poderia chegar. No entanto, a cruel e impiedosa realidade mostrava-me um outro lado que me custava aceitar. Tanto que dentro de mim, ainda existia a esperança de que toda aquela história fosse de alguma forma desmentida. Era demasiado duro sofrer por uma mentira daquela dimensão.

Uma chávena de chá com algumas bolachas sobre uma bandeja foi apresentada à minha frente. Queria recusar, porém, estava tão exausta de chorar que me sentia sem forças sequer para dizer algo tão simples como um não. Decidi pegar na bandeja, pousei-a sobre as minhas pernas e a custo coloquei aquele alimento no estômago que se enraivecia contra aquela comida indesejada. Podia até nem ter tocado no que havia à minha frente, mas fi-lo para evitar alguma discussão com o Axel que me deixou sozinha. Disse-me só que ia providenciar as minhas coisas por aquela noite e que antes de me deixar à vontade, teria que pelo menos ligar aos meus pais e dizer-lhes que estava bem. Teria que mentir e ser convincente. Mais do que nunca a palavra mentira assumia proporções gigantescas dentro de mim, sugando toda a força que me restava.

- Que bom que comeste. – Falou, retirando a bandeja que estava sobre as minhas pernas e pousou-a sobre a mesa de centro daquela sala de grandes dimensões. O sofá em que estava sentada era bege e era tão espaçoso que se poderiam sentar pelo menos umas seis a sete pessoas. Além disso, havia duas poltronas, a mesa de centro, uma televisão com um ecrã grande embutido na parede amarelada da sala. Os tapetes eram castanhos com desenhos circulares e com flores e folhas banhadas pelo Outono. Do lado esquerdo daquela divisão, uma estante expunha loiça cristalina e algumas fotografias na parte debaixo. Já o lado direito guardava uma estante com imensos livros.

- Onde está a Sónia? – Perguntei por fim, sentindo a minha voz terrivelmente rouca e arrastada.

- A minha irmã teve uns problemas editoriais e precisou ir até Londres. Disse que ainda volta a tempo de passarmos a Páscoa juntos. – Explicou, sentando-se ao meu lado e vi o seu telemóvel na mão. – Precisamos ligar aos teus pais. Se quiseres, posso falar eu.

Assenti e ele passou o aparelho para a minha mão. Digitei o número da minha casa e devolvi. Levantei-me, dizendo no mesmo tom de antes que iria preparar-me para dormir e que não queria falar com ninguém. Sabia que sobretudo a minha mãe exigiria falar comigo para ter a certeza que realmente estava tudo bem. Portanto, contava com ele para inventar uma boa desculpa para me poupar. Um longo corredor levou-me até ao quarto de Sónia que parecia ter mais livros do que na sala. Tinha duas estantes que ocupavam uma parte considerável do seu quarto e estavam apinhadas de livros. Perto do armário onde deveria guardar a sua roupa, estava uma secretária repleta de livros, entre outros papéis. A cama encontrava-se próxima à janela, onde estava uma camisa de dormir.Enquanto trocava de roupa, ouvi a voz do Axel na sala. Tentei forçar a minha mente a distanciar-se daquela conversa, mas ouvi-o dizer que no dia seguinte, iria até à minha casa buscar as minhas coisas porque seria melhor que ficasse com ele nos próximos tempos. Isso definitivamente, deixaria a impressão errada nos meus pais que julgariam que estava a curar um amor com outro. Só que não era nada disso. Longe de ser algo assim, aliás, se dependesse de mim, nunca mais teria a oportunidade de cruzar-me com esse sentimento que agora me destruía por dentro. Com isso em mente, olhei para a janela que se encontrava a pouco mais do que um metro. Era grande e mostrava um céu recheado de estrelas e uma meia-lua que parecia prestes a desaparecer. Aproximei-me do vidro, recordando que aquele era um oitavo andar. Mais do que suficiente para arrancar de vez, aquela dor que até me retirava a força para respirar. Coloquei a mão no vidro e forcei para deslizasse. A brisa de uma noite fresca, fruto de uma Primavera ainda tímida tocou os meus braços despidos. Aquela camisa de dormir azul-clara não tinha mangas e estendia-se até aos meus joelhos. O frio foi uma boa emoção naquele momento que procurava sentir algo que não fosse apenas dor. Todavia, o que eu buscava não era uma emoção e sim, a cessação de toda e qualquer emoção. Esse foi o motivo que me levou a colocar o primeiro pé trémulo sobre o beiral daquela janela que era grande o suficiente para que pudesse ficar de pé e ter uma vista privilegiada sobre o Rio Douro que corria mais adiante. Embora, pudesse apreciar uma vista invejável de barcos e de uma cidade luminosa que se refletia nas águas daquele rio, este não seria capaz de acolher-me pois ainda estava um pouco distante. Não obstante, isso não me incomodava. Até porque se caísse na água, ainda poderia existir o risco de sobreviver e essa não era de todo a minha intenção. Não queria viver num mundo que nos mostrava uma beleza efémera e nos espezinhava com escárnio e mentiras. A vida que um dia tinha imaginado que fosse pintada por todas as cores, mostrava que apenas tinha sido atraiçoada e por engano, vira mais do que o cinzento e o negro. A presença dessas cores severas nos meus olhos que nem conseguiam encontrar beleza na paisagem à minha frente, era a prova evidente de que alguém que já não conseguia ver as cores falsas. Consequentemente, esse alguém, também perdera toda e qualquer vontade de passar o resto dos seus dias, agonizando. Fechei os olhos, inspirando. Até o respirar era doloroso e tendo isso em mente, resolvi que aquele era o momento para desligar-me definitivamente de todo aquele turbilhão de sentimentos que me corroía por dentro. Mantendo os olhos fechados, retirei a primeira mão que me ajudava a equilibrar-me e ao retirar a segunda, senti um forte puxão da minha roupa que me fez cair. Todavia em vez de sentir a velocidade do vento a envolver o meu corpo, o que senti foi o chão duro do quarto. Levantei o rosto, fitando o olhar ainda assombrado de Axel que desejei que não tivesse chegado a tempo.

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