Ontem.
Sinto como se tivesse sido ontem, o dia em que te mudaste para a casa que ficava exatamente à frente da minha. Recordo-me perfeitamente daquela tarde em que fiquei atrás das cortinas da janela do meu quarto, espreitando e com curiosidade, observando as pessoas que descarregavam os móveis, entre outros objetos da casa. A minha atenção prendeu-se sobretudo àquele momento em que vi que finalmente, na minha vizinhança teria alguém da minha idade. Tu apareceste apenas, na última viagem que aquela carrinha fez até à tua casa. Até esse momento, tinha observado tudo atentamente, nunca perdendo a esperança de que alguém mais novo poderia aparecer. Tinha-me enchido de esperança quando vi algumas coisas que parecia de criança e tudo se confirmou quando saíste da carrinha. Seguravas uma bola de futebol nas tuas mãos e sorrias na direção da tua mãe que te apresentava à tua nova casa.
Os teus traços ainda tão infantis, porém doces deixaram-me com a impressão de que não seria difícil falar contigo. Tal se confirmou, no dia seguinte, quando nos encontrámos ao sair de casa. Levavas a mochila às costas e sorrindo, cumprimentaste-me e perguntaste qual era a escola para onde ia e que se quisesse podia apanhar boleia com o teu pai. Pouco depois, o teu pai chamou por ti.
Guilherme.
Embora no primeiro ano em que te mudaste, não tenhas frequentado a mesma turma que eu, os anos que se seguiram, foram diferentes. Mais do que vizinhos, fomos colegas de turma, amigos e mais tarde, namorados. Conhecemo-nos com apenas oito anos e demorámos quase o mesmo tempo até admitirmos os sentimentos que nutríamos um pelo outro.
Eu conhecia-te. Tu conhecias-me.
Não havia necessidade de esconder ou alterar qualquer comportamento ao estar contigo. Tudo era natural. Tudo fluía instintivamente quando estava contigo.
Chegaram a dizer-me e até tu ouviste de amigos teus, que me prendera a alguém sem dar a oportunidade a mim mesma de conhecer outras pessoas. Por outras palavras, pensavam que deveria ter namorado outros rapazes e tu devias ter estado com outras raparigas antes de nos comprometermos. Seria inveja do que nós tínhamos? Não sei.
Por que razão iria procurar outra pessoa, quando tinha a certeza que tinha a pessoa certa na minha vida? Nós não precisávamos de concordar em tudo, nem de estar todos os dias juntos e muito menos, de opiniões alheias para concluirmos que éramos felizes e que podíamos ser sempre assim.
Porém, a palavra “sempre” prega-nos partidas. Quando pensamos que os alicerces da nossa vida estão sobre terra firme, podemos descobrir que afinal um terramoto violento pode mudar tudo.
Tu adoeceste.
Era uma simples constipação, afirmaste vezes sem conta quando me preocupei e pedi-te que faltasses aos treinos de futebol para tratares da tua saúde.
- O campeonato está quase a acabar. Não posso faltar a estes treinos mas prometo-te que depois descanso.
Cada vez que recordo essas palavras, dilacera-se algo dentro de mim. Quem me dera poder voltar atrás, discutir contigo e obrigar-te a ir para casa. Mas não foi isso que aconteceu. Fui assistir ao teu jogo e a meio da segunda parte, a tosse intensa fez com que finalmente tivesses que parar de correr. Alguns dos teus colegas aproximaram-se e mal o fizeram, caíste no chão. De imediato, gritei para que chamassem um médico. Este correu para o campo e o meu corpo paralisou ao ver a primeira de tantas convulsões que tiveste nos dias que se seguiram.
A simples constipação era até mais do que uma gripe, acabou numa pneumonia com sintomas tão graves como convulsões, vómitos persistentes, entre outros.
Nunca desisti de ti. Sempre acreditei que fosses capaz de ultrapassar.
Nunca poderia passar pela minha cabeça perder-te fosse em que circunstância fosse mas aconteceu. Tu não aguentaste. Os medicamentos nada fizeram e eu perdi-te.
O termo “sempre” perdeu o sentido.
Culpei Deus, os médicos, culpei os teus pais por também não terem feito nada antes, culpei-me a mim também. Culpei o mundo.
Chorei copiosamente horas, dias, semanas e até meses cada vez que acordava e sabia que não te iria ver ou quando me deitava e sabia que não receberia nenhuma mensagem tua ou ouviria a tua voz a chamar-me da tua varanda para me desejar uma boa noite.
Fui incapaz de ver o teu corpo no teu enterro.
Recusei-me a aceitar durante tanto tempo que quando finalmente, comecei a cair em mim e vi que não irias voltar, tranquei tudo dentro de mim. Repeli qualquer tipo de ajuda, fosse dos meus amigos, fosse da minha família ou da tua, fosse ajuda religiosa… não quis qualquer tipo de ajuda.
A solução era simples. Trancar tudo cá dentro. Construir uma torre tão forte como impenetrável.
Pus uma máscara. Não havia lugar para sorrisos sinceros mas apenas para um fingimento necessário, para tranquilizar e dizer que estava bem.
Agora é só seguir em frente, sabendo que nada importa quando nada é para “sempre”.
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Recomeçar
RomantizmCatarina sofreu uma grande perda na sua vida e isso fez com que encarasse as coisas de forma diferente. Construiu alguém, uma pessoa, uma barreira que se propunha a suportar o resto da sua vida. Será mesmo possível prever o que a vida tem guardada p...