14º Capítulo - Pesadelo

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A cada passo que dava, a cada inspiração ou expiração podia sentir os seus olhos postos em mim. Mesmo sem dizer uma única palavra, os seus olhos estavam em mim. Como consequência disso, sempre que possível, deitava-me na minha cama e recusava-me a abandoná-la. Não queria fazer mais nada que não fosse chorar. As comportas de uma barragem repleta de sofrimento tinham explodido e nada detinha aquela corrente pungente. A cada lágrima que caía, um pedaço da pessoa que tinha construído era arrastada por aquela corrente.

Todavia, o Axel convenceu-me pelo menos a acompanhá-lo numa saída para fazer umas compras a seu ver necessárias para a nossa alimentação. Aliás, as outras ocasiões pelas quais abandonava o meu quarto era simplesmente para comer.

Quanto a isso, ele nada dizia. Também não acreditei que por muito convincente que quisesse ser, conseguisse retirar-me à força daquela vontade de não fazer nada e simplesmente desaparecer. Era como se ele fosse um simples espectador da piscina para onde me empurrara. Agora impávido e algo sereno, observava como me afogava.

Contudo, nem a raiva me auxiliava a dirigir-lhe a palavra. Não havia sequer a hipótese de vencer uma argumentação pois mal pensava em abrir a boca, os meus olhos ardiam.

Nem mesmo uma lembrança do Guilherme produzia um efeito distinto em mim já que as únicas imagens que rondavam a minha mente, era aquela em que ele estava deitado na cama do hospital. O rosto pálido, a aparência febril e um sorriso que se apagava a cada visita que lhe fazia. A sua voz antes jovial e forte substituía-se por murmúrios cansados e quase inaudíveis.

Quando assombrada por essas recordações, bastava correr e ligar o computador. Deliciar-me com alguns dos vídeos e fotografias que representavam alegria e mais do que isso, vida. Aquela corrente quase elétrica de vivacidade que existia em cada poro do seu corpo representava-se claramente naquelas imagens que agora se encontravam tão distantes. Tão longe se encontravam que não podia sequer estender a mão para alcança-las. Elas haviam mergulhado no fundo.

- Também não vais trabalhar hoje?

- Já te cansaste de apreciar os estragos que fizeste? – Perguntei numa voz arrastada sem desencostar a cabeça da almofada. – Lamento se não consigo fingir que a tua terapia do silêncio e observação está a funcionar.

- As coisas não vão mudar de um dia para o outro. – Falou calmamente, sentando-se na beira da cama. – Nada é assim tão simples.

- Tendo a consciência disso, não seria melhor ter deixado tudo como estava? – Indaguei, fixando o meu olhar no armário que ficava no meu campo de visão. Recusava-me a manter qualquer tipo de contacto visual com aquele que provocara aquele meu estado deprimente.

- Não. – Respondeu. – Um dia vais entender que isto tem um propósito e que nada tem a ver com alguma diversão perversa da minha parte. Vem, vamos até à sala.

- Não quero ir a lado nenhum.

- Visto que não estás a trabalhar, nem a fazer nada de útil, suponho que não te importes de me dar uma mãozinha nuns textos que preciso de ler e avaliar. Apesar da tua falta de inspiração para escrever algo como antes, as tuas competências linguísticas não te deixaram.

O normal seria recusar-me a fazer tal coisa, sobretudo porque pretendia pôr algum do seu trabalho sobre mim para aliviar a sua carga. No entanto, a minha resistência mostrou-se inútil e fui até à sala onde me foram passados, alguns documentos para o computador. Sem qualquer ânimo ou disposição para ler ou fazer correções, abri o primeiro documento. Vagarosamente, percorri as primeiras dez linhas, criando as minhas primeiras suspeitas. Aquele estilo era demasiado familiar.

- Helena Salgueiros. – Comecei por dizer. – Literatura infanto-juvenil. Então, até estás por detrás de escritoras como ela.

- Cubro um número vasto de escritores. – Respondeu sem retirar os olhos do ecrã do seu próprio computador. – Gostas do estilo dela?

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